Jaime Carvalhais “Paraíso era um museu a céu aberto”

por Cristiane Maria Bindewald
Jaime é conhecido por seu trabalho de restauração de móveis em seu ateliê e pela coleção de mobília rústica rural, que em parceria com a prefeitura, pode ser apreciada por toda a população de São Sebastião do Paraíso na Casa da Cultura. Através do Instituto Cultural ABC, em seu site http://www.institutoculturalabc.com/, o paraisense de 60 anos oferece a toda a população o acesso a um extenso arquivo sobre a identidade cultural do Sudoeste Mineiro e Nordeste Paulista, contribuindo para a preservação e perpetuação da cultura desta região.
Como começa sua
história?
Nasci em Paraíso, adoro
Paraíso! Estudei Jornalismo, em Ribeirão Preto. Fiquei 20 anos em São Paulo,
fora do Jornalismo. Em São Paulo eu trabalhava com caldeiraria, montagem de
agroindústria. Fazia tachos e alambiques para fazendeiros que produzem
rapadura, melado, açúcar e cachaça. Na volta a Paraíso, em 1990, eu encontro a
cidade desmanchando todos os casarões da década de 20. Todos estavam sendo
jogados ao chão. Eu sabia que, em São Paulo, era tirado proveito comercial e
cultural do material de demolição. Foi com este dinheiro que eu banquei o alto
custo da montagem de um museu. Vendendo portas e janelas antigas para aplicar
no lado cultural.
Qual foi sua primeira
grande escola cultural?
A
cidade de Paraíso. A cidade era um museu a céu aberto, impecável. Tudo feito
com muita grana de café. Um capricho só! E observar as pessoas mais
velhas. Eu tinha esta capacidade de observar as pessoas mais velhas. O que os velhos
tinham prá dizer. E a cidade mesmo, a rua, observar a arquitetura, a oralidade.
O que forma a cultura
de um povo, em sua opinião?
Essa ideia de ligar a
cultura à faculdade e escola é válida, mas uma cultura muito mais forte é a
popular. A cultura do nosso cotidiano, o que a gente faz todos os dias. Alguns
elementos são fundamentais, não precisa de discurso de antropologia,
psicologia, para entender o que é cultura. Qualquer pessoa, de qualquer nível
social, tem sotaque, fala de forma particular, tem sua língua. Também come de
forma particular. A culinária é fundamental para se conhecer uma cidade, uma
região. A raça que compõe a maioria de uma cidade ou região também é
fundamental. Árabes, judeus, portugueses, espanhóis... Cada povo tem um tipo de
culinária. A religiosidade, os santos que estão mais presentes na vida de uma
cidade marcam profundamente o modo de vida. O consumo de massa, os objetos que nós
compramos no dia-a-dia também marcam definitivamente a nossa identidade
cultural. Esses elementos são coisas bastante simples, toda pessoa pode
entender. Nossa função como jornalistas é fazer com que a palavra cultura fique
muito mais fácil de ser entendida do que no meio acadêmico. Cultura nada mais é
do que o trabalho, a ação, o acúmulo de conhecimento que as pessoas têm no
dia-a-dia.
Como você leva sua
cultura às pessoas?
Através do Instituto
Cultural ABC, da parceria com a prefeitura no museu municipal e de minha
oficina de restauração, que é o coração, o que sustenta a montagem de um museu.
O Instituto Cultural ABC tem uma parceria há seis anos com a prefeitura. É o
museu municipal, a Casa da Cultura, que tem como objetivo mostrar como era uma
Casa de Roça em 1870, com todo o mobiliário rústico rural da época.
Todas as peças do
mobiliário são suas?
Sim, são peças de uma
única fazenda, de um estudante de Direito da Faculdade São Francisco, formado
em 1882. O nome dele era Francisco Soares Neto. A fazenda era a Córrego Fundo,
já extinta. São objetos muito estudados pelos designers de São Paulo. São tidos
como os primeiros móveis genuinamente brasileiros. Eles foram retirados desta
região durante 30 anos, foram vendidos em casas especializadas, em São Paulo, e
desapareceram. Esses móveis são muito valorizados pela parte material, mas
principalmente pela cultural. Eles eram feitos na mesma fazenda, pelo mesmo
carpinteiro, carapina. Talvez seja o nosso maior elemento cultural: os móveis
rurais do ciclo do café.
Por que você decidiu
fazer esta parceria com a prefeitura?
Ao invés de vender,
como os antiquários fizeram durante 30 anos, eu tirei proveito cultural deles.
Como era um conjunto, toda a mobília, eu quis mostrar para todo o Brasil que é
aqui em Paraíso, no ciclo do café, no Sudoeste Mineiro e no Nordeste Paulista,
que nasce o primeiro móvel autenticamente brasileiro, sem influência de
designers estrangeiros. Essa é a importância desse mobiliário. É por isso que
eles são cotados em leilões, em São Paulo. Esse aproveitamento cultural é muito
mais difícil, mas muito mais importante.
Qual a importância de
um museu, em sua opinião?
O museu é feito de
coisa antiga, mas o objetivo principal de uma curadoria de museu é projetar o
futuro.
Por exemplo, o Picasso foi com um amigo a um museu de arte primitiva em Berlim,
em 1906. Toda a arte era feita na África, que era colonizada pelos europeus.
Depois desta visita, Picasso muda o mundo. Ele quebra, através da pintura e da
escultura, toda aquela escola acadêmica. Até 1906, todo mundo tinha que ser
retratista. Tudo era feito sob medidas e retas. Depois desta visita, o mundo
nunca mais foi o mesmo. Ele muda a pintura, começa a criar novas escolas, novas
cores, novas formas. O retratismo cai em desuso. Ele inventa o mundo moderno,
com essa visita ao museu.
Você frequentava museus
quando criança?
Não, aqui não havia.
Mas basta ter imaginação! E, de tempos em tempos, o mundo parece que fecha para
balanço. De 30 em 30 anos, mais ou menos. Agora, por exemplo, nós estamos nessa
época. Depois dessa tecnologia toda que está fixada, perfeita, todo mundo vai
repensar o passado. Sempre foi assim, de 30 em 30 anos, há uma reciclagem nas
ideias, nos objetos. Os produtores culturais nada mais fazem do que observar
estas mudanças.
O que você pretende
fazer com as peças de uma botica antiga, que estão em seu ateliê?
Paraíso é uma cidade
que sempre foi procurada por quem busca antiguidades. Uma delas é essa botica,
uma farmácia de 1909, com um mobiliário muito bonito, muito peculiar. Já está
em reforma, já foram restauradas três peças. Existem mais dez a serem
restauradas, até o final do ano estarão prontas. Então, em 2013, haverá um novo
museu de farmácia, que será muito representativo do lado urbano de Paraíso.
Porque, ao mesmo tempo em que existia café, existia uma faculdade de
Odontologia e Farmácia, aqui.
O que é o Instituto
Cultural ABC?
O instituto tem várias
frentes de trabalho. Uma delas é o museu com a Casa de Roça. Existem outros
projetos em andamento: a Hemeroteca, um departamento de bibliotecas que guarda
livros, revistas e jornais antigos digitaliza-dos dentro do site; há o projeto
da botica, em andamento; um projeto de leitura, o Ler Contando; a revista “São
Paulo e Minas”, um canal de comunicação, no site; e um projeto de design Tranform,
que é o reaproveitamento de material de demolição.
Como é feito este
trabalho de reaproveitamento?
Demolição começa com um
garimpo feito nas casas em demolição, de portas, janelas, objetos de madeira.
Depois, há um reapro-veitamento deste material. Isto é feito no Brasil inteiro.
Todas as cidades têm depósitos de material de demolição. Alguns vendem sem
restauro, outros desmancham o material e transformam em mesas, aparadores,
armários, pequenos objetos de decoração. É um móvel muito procurado,
atualmente. Existem muitas fábricas aqui na região. É taxado como móvel
ecologicamente correto e fica muito bonito, pois o material é de primeira e os
projetos das portas e janelas são belíssimos.
E como é o projeto de
leitura “Ler Contando”?
O clube de leitura
chama-se “Dona Hilda Borges”. Ela foi uma professora de infância, que tem o
hábito de ler muito. A forma mais fácil de você passar o hábito de leitura é
contando histórias. Uma professora alfabetizadora usa muito esta ferramenta de
contar estórias para o menino ainda não alfabetizado. Um garoto que escuta boas
estórias, futuramente será um bom leitor. A proposta do Ler Contando é
justamente esta: nós escolhemos dois livros, “A Semana”, de Machado de Assis, e
“Minha Vida de Menina”, da Helena Morley. São textos curtos, de uma lauda, 22
linhas, muito interessantes. A forma de apresentação é de e-book, o livro lido,
no site. E como os textos são curtos, há um para cada dia, em capítulos, como
se fosse uma rádio novela. A intenção é formar bons leitores no futuro, lendo
prá eles agora.
Seus pais eram
professores?
Meus pais eram
professores, Dalva e Astolfo. Metade da cidade os conhece. Meus avós também
eram. Professores que muito cooperaram em uma época onde era muito difícil ser
professor. Não havia estes recursos modernos, estas ferramentas, A pedagogia
moderna está fora da sala de aula. Ela precisa buscar ferramentas em todo
lugar. Tem um monte de gente boa que pode ajudar.
Seus pais te
influenciaram culturalmente?
Claro, a gente herda.
Cultura é essa passagem de pai prá filho.
Você tem filhos?
Eu tenho dois filhos,
já formados. A Mariana é formada em Psicologia, já trabalha há quatro anos, e o
Pedro é produtor cultural, fez Jornalismo, Rádio. Eles estão vindo aí, vão
ajudar a produzir uma Paraíso melhor.
Percebe-se pouco
interesse da população pelos museus. Qual seria o motivo, em sua opinião?
Olha, o Museu do
Futebol em São Paulo é lotado, o Museu da Palavra é lotadinho, o Museu da
Mágica e o Museu do Crime, também. O Museu da Música, o Museu do Rádio, o Museu
da Louça, o Museu de Arte Moderna, da Pinacoteca... Tem cada um, viu! Todos têm
certas características comuns: eles são temáticos, são interativos, o público
que visita é quem manda; são dinâmicos, são museus vivos, você pode tocar. O
museu está muito ativo onde existem profissionais que fazem com mais paixão. O
interesse é criado pelo profissional de marketing, através da divulgação. E
também através de outros recursos, como oferecer lembrancinhas, culinária e
artesanato local. Um motivo a mais para atrair as pessoas. Divulgação é
fundamental. Ter horários flexíveis, também. O museu deve estar aberto no
horário em que o povo pode ir lá. Não pode fechar às 4 horas da tarde e aos
sábados e domingos.
No site do Instituto
Cultural ABC, descobrimos peculiaridades da região, como por exemplo, uma
alusão ao “micro-clima” de Paraíso.
Quando você monta um
museu, tão importante quanto o acervo que você está disponibilizando é o
entorno do museu. Onde é que está este museu. Se estiver no interior, você
precisa explicar onde está, que região é. Algumas características desta região
devem ser mostradas. “Olha, lá só tem cafeicultores. Olha, lá tem um clima
muito equilibrado. Eles estão na divisa do estado de Minas com o estado de São
Paulo.” O micro-clima é apenas uma crendice popular, de uma peculiaridade de
nosso clima. Paraíso tem um micro-clima, onde há uma menor variação de
temperatura, entre a máxima e a mínima, durante o ano inteiro. No inicio do
século XX, queriam fazer hospital para tratamento de tuberculose aqui, por este
motivo. Isso é tudo empírico, não tem comprovação. O instituto ABC marcou
durante quatro anos as variações de temperatura, durante o dia e a madrugada.
Com termômetro simples, na parede. No site há comparações. Por exemplo: como
está a temperatura em São Tomás, Itaú, Passos, Altinópolis, Jacuí? Realmente,
São Tomás estava sempre 2 graus mais quente e Jacuí, 1 grau e meio mais fria,
por exemplo. Mas é apenas uma observação empírica, uma forma de observação
popular. Paraíso tem um clima especial e isso é que é chamado de micro-clima.
Fale de seus outros
trabalhos: a rapadura e o licor de coco-de- indaiá?
É um resgate de
receitas rurais antigas. Quando você restaura um móvel, imagina o que é que as
pessoas colocavam em cima do móvel. A culinária é o elemento cultural mais
fácil para se reconhecer a identidade rural deste tempo. O coco-de-indaiá nasce
no cerrado brasileiro. Tem aroma e sabor muito marcantes. Aqui, na região, se
fazia este licor. Na zona rural era muito comum a extração da essência desse
coco para a aplicação culinária. Já a rapadura é a representação do engenho. O
engenho era a parte principal de uma fazenda. O que primeiro se montava em uma
fazenda. A rapadura, o açúcar, o melado e a cachaça eram os primeiros produtos
rurais. A rapadura é o doce mais antigo do Brasil, a base de toda a culinária
rural. Todos os pés-de-moleque e tantos outros doces são feitos à base da
rapadura. É o cozimento do caldo de cana: o doce mais simples e mais antigo do
Brasil.
Instituto Cultural ABC
http://www.institutoculturalabc.com/
Museu Histórico
Municipal Na-poleão Joele - Casa da Cultura
Av. Oliveira Rezende,
509
Aberto ao público,
gratuitamente, de segunda à sexta-feira, das 8:00 às 11:00 horas e das 13:00 às
17:00 horas. Aos sábados, das 13:00 às 17:00 horas.
Ateliê de Restauração
de Jaime Carvalhais:
Rua dos Antunes, 1370