CRÔNICA - Joel Cintra Borges

Perdão, Doralice!

Por: Joel Cintra Borges | Categoria: Cultura | 02-09-2018 21:02 | 4080
Joel Cintra Borges
Joel Cintra Borges Foto: Reprodução

À guisa de crônica, apresentaremos a história de uma paciente chamada Doralice (o caso é real, o nome não), que foi atendida pelo Dr. Salomão A. Chaib, da FMUSP. Eis o resumo do relato comovente, feito com humildade pelo próprio médico.

“Perdão, Doralice. Na verdade, eu estava cego. Você tentou suicidar-se bebendo soda cáustica. Era o que tinha à mão, na modesta cozinha onde sua mãe passava os dias. Fiquei imaginando que problemas tão graves a levaram, aos dezesseis anos, a desistir da vida. Que choques emocionais, conflitos de sentimentos, teriam ferido tão profundamente o cerne de sua existência, ainda tão tênue e indefinida?

Por que você não respondia aos insistentes apelos de sua mãe? Por quê? Quando tivesse passado o perigo, iria perceber que o problema que a levara àquele ato não era tão grave assim. Chegando à idade adulta, veria como é banal e sem importância o que parece grave e assustador na juventude.

No momento, eu precisava salvar-lhe a vida...

Seis meses internada, quatro vezes operada, trinta radiografias, seis litros de sangue, dias e noites de cuidados e dedicação de médicos e enfermeiros, eis o balanço sumário de sua cura. Apressei-me em dar-lhe alta, satisfeito pelo resultado do enxerto (um pedaço de intestino no lugar do esôfago) e por vê-la retornar à vida. Agora você engolia qualquer alimento sem dificuldade, começava a ganhar peso e força, recuperando quilos perdidos.

Ao despedir-me, pedi que voltasse dentro de três meses para novas radiografias de controle. Você, que tanto sofrera e raramente ria, deu-me o prêmio do sorriso. Foi embora.

O êxito do caso animava-me a apresentá-lo num próximo congresso médico. Você, porém, reservara para si o último ato. Em sua breve existência, na pequena experiência de sua imaturidade, veio ensinar a homens velhos e calejados que é inútil reparar o corpo sem lancetar também os abscessos da alma.

Dias após haver nos deixado, recebi chamado urgente para ir ao Pronto Socorro. Você se suicidara, bebendo formicida. Afastei o lençol branco, passei os dedos por seus cabelos úmidos, por seu rostinho ainda quente, como o fizera tantas vezes. Baixei a cabeça e, em profunda tristeza, pedi-lhe perdão.

Perdão, Doralice. Na verdade eu estava cego. Preocupado com os males do corpo, esqueci o seu espírito, ainda mais doente. Como pude descuidar-me das feridas da alma, se, naquele dia, quando você se obstinava contra seus pais, traía seu sofrimento? É o eterno engano dos cirurgiões, que palpam tumores e não se lembram de que há um coração oculto vibrando em ânsias, sonhos e sofrimentos.”