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Sobre política e jardinagem

Por: Redação | Categoria: Do leitor | 14-09-2018 10:03 | 1504
Foto: Reprodução

De todas as vocações, a política é a mais nobre.

Vocação, do latim vocare, quer dizer chamado. Vocação é um chamado interior de amor. Chamado de amor por um fazer. No lugar desse "fazer" o vocacionado quer fazer amor com o mundo.

Psicologia de amante: faria, mesmo que não ganhasse nada.

Política vem de "polis", cidade. Era para os gregos um espaço seguro, ordenado e manso, onde os homens podiam se dedicar à busca da felicidade.

O político seria aquele que cuidaria desse espaço. A vocação política, assim, estaria a serviço da felicidade dos moradores da cidade.

Talvez por terem sido nômades no deserto, os hebreus não sonhariam com cidades, sonhariam com jardins.

Quem mora no deserto sonha com oásis. Deus não criou uma cidade. Ele criou um jardim. Se perguntássemos a um profeta hebreu o que é política ele nos responderia: "A arte da jardinagem aplicada às coisas públicas".

O político por vocação é um apaixonado pelo grande jardim para todos.

Seria indigno que o jardineiro tivesse um espaço privilegiado, melhor e diferente do espaço ocupado por todos. Conheci e conheço muitos políticos por vocação. Sua vida foi e continua a ser um motivo de esperança.

Vocação é diferente de profissão. Na vocação a pessoa encontra a felicidade na própria ação. O prazer está no ganho que dela se deriva. O homem movido pela vocação é um amante. Faz amor com a amada pela alegria de fazer amor. O profissional não ama a mulher. Ele ama o dinheiro que recebe dela. É um gigolô.

Todas as vocações podem ser transformadas em profissões. O jardineiro por vocação ama o jardim de todos. O jardineiro por profissão usa o jardim de todos para construir seu jardim privado, ainda que, para que isso aconteça, ao seu redor aumentem o deserto e o sofrimento.

Assim é a política. São muitos os políticos profissionais. Posso, então enunciar minha segunda tese: de todas as profissões, a política é a mais vil.

O que explica o desencanto total o povo, em relação à política. Guimarães Rosa, questionado por Gunter Lorenz se ele se considerava político, respondeu: "Eu jamais poderia ser político com toda essa charlatanice da realidade".

"Ao contrário dos "legítimos" políticos acredito no homem e lhe desejo um futuro. O político pensa apenas em minutos. Sou escritor e penso em eternidade. Eu penso na ressurreição do homem. Quem pensa em minutos não tem paciência para plantar árvores.

"Uma árvore leva muitos anos para crescer. É mais lucrativo corta-la. Nosso futuro depende dessa luta entre políticos por vocação e políticos por vocação e políticos por profissão. O triste é que muitos que sentem o chamado da política não têm coragem de atendê-lo, por medo da vergonha de ser confundido com gigolôs e de ter de conviver com gigolôs.

"Escrevo para você, jovem, para seduzi-lo à vocação política. Talvez haja um jardineiro adormecido dentro de você. A escuta da vocação é difícil, porque ela é perturbada pela gritaria das escolhas  esperadas normais, medicina, engenharia, computação, direito, ciência.

"Todas elas são legítimas, se forem vocação. Mas todas elas são afunilantes. Vão coloca-lo num pequeno canto do jardim, muito distante do lugar onde o destino do jardim é decidido.

"Não seria muito mais fascinante participar dos destinos do jardim?

Acabamos de celebrar os 500 anos do Descobrimento do Brasil. Os descobridores, ao chegar, não encontraram um jardim. Encontraram uma selva. Selva não é jardim. Selvas são cruéis e insensíveis, indiferentes ao sofrimento e à morte. Uma selva é uma parte da natureza ainda não tocada pela mão do homem.

Aquela selva poderia ter sido transformada um jardim. Não foi.

Os que sobre ela agiram não eram jardineiros, mas lenhadores e madeireiros.

Foi assim que a selva, que poderia ter se tornado jardim, para a felicidade de todos, foi sendo transformada em deserto salpicado de luxuriantes jardins privados, onde poucos encontram vida, prazer.

Há descobrimento de origens. Mais belos são os descobrimentos de destinos. Talvez, então, se os políticos por vocação se apossarem do jardim poderemos começar a traçar um novo destino. Então, em vez de desertos e jardins privados, teremos um grande jardim para todos, obra de homens que tiveram o amor e a paciência de plantar árvores em cuja sombra nunca se assentariam".

Rubem Alves - (Folha de S.Paulo 19 de maio 2000)

Luiz Carlos Raimudo - São Sebastião do Paraíso