Malba Tahan, no livro “Lendas do Deserto”, reúne uma série de contos muito interessantes, situando-os na distante e mágica Arábia. Fica a dúvida, se são verdadeiramente lendas daqueles povos, ou criações de sua prodigiosa mente de escritor e matemático. O mais provável é que seja uma mistura, o que não altera de forma alguma o extraordinário valor de sua obra literária, principalmente pela grandeza de sentimentos que aflora de todas as narrativas. A crônica de hoje baseia-se em uma dessas lendas.
Salim era um rico mercador da cidade de Meca. Pena é que fosse famoso por sua crueldade para com as pessoas e animais. Importava-lhe, acima de tudo, aumentar suas posses, fosse como fosse, machucasse a quem machucasse .
Certa ocasião, após cavalgar um dia inteiro pelo deserto, debaixo de um sol inclemente, seu cavalo começa a dar sinais de grande cansaço. Mas, como a cidade já estava à vista, Salim começa a chicoteá-lo brutalmente. O animal, num último esforço, galopa uns poucos quilômetros, morrendo em seguida.
— Pouco me importa. - Resmunga ele. - Posso comprar outro!
Tomando sua bagagem, ele começa a caminhar. De repente, ao olhar para trás, toma o maior dos sustos: a sombra que projetava era de cavalo! Grande, quatro pés, cauda, orelhas erguidas, tudo. Assustado, ele corre, depois rola pelo chão, tentando desfazer-se daquela sombra, mas, debalde.
Quando entra na cidade, esse fato é logo visto e Salim torna-se motivo de chacota por parte das pessoas, ouvindo gracejos e gargalhadas em todos os lugares por onde passa. Desesperado, ele passa a evitar o povo, permanecendo em casa. Mas, logo se entedia, entristecendo muito. Aconselhado por alguém, consulta um sábio, que lhe dá o seguinte conselho:
— Auxilie a tudo que está à sua volta: pessoas, animais, plantas e seres inanimados. Procure olhar com amor até a própria poeira do chão em que você caminha.
Já transformado pelo sofrimento, o mercador procurou seguir com o maior empenho essas palavras. No início teve que forçar sua índole e, mesmo a contragosto, ajudava aos desvalidos, procurava tratar bem aos animais, era gentil com as árvores. Nem chutava mais os objetos, como gostava de fazer antigamente. Aos poucos, sua fama foi mudando e seu nome tornando-se respeitado. E, fato digno de nota, a sombra foi diminuindo e transformando-se, até que tomou a forma de seu próprio corpo.
Interessante é que, nesse tempo, o mercador não estava mais preocupado com sombras, e sim com o sofrimento alheio, uma vez que sua visão do mundo mudara completamente...
A uma pessoa que o procurou, o sábio revelou que a causa daquele fenômeno fora simplesmente grande remorso.
Praticamente todos nós temos nossa sombra de cavalo: lembranças incômodas que nos acompanham, de atos menos dignos que praticamos no decorrer da vida.
Palavras duras dirigidas a nossos pais, talvez hoje já no mundo espiritual, as quais ressoam em nossos ouvidos como lava ardente.
Faltas no campo afetivo, de menor ou maior gravidade, para com o companheiro ou companheira. Mesmo crimes, como aborto, roubo ou até coisas piores.
Entretanto, importante é entender que, se águas passadas não movem moinhos, os rios de agora podem fazer muita coisa. Há muitos velhinhos nos asilos, ou mesmo pelas ruas, precisando daquelas palavras doces que gostaríamos de ter dirigido a nossos genitores. As mulheres que, num momento infeliz, optaram pelo aborto, carregando hoje em suas consciências o peso dessa falta, podem cuidar de filhos alheios, adotando-os ou prestando serviços gratuitos em creches, ou orfanatos.
Para toda grande falta existe um apagador proporcional. O importante é entendermos que é um grande desperdício de tempo e de energias viver cheio de remorsos e improdutivamente. Isso seria uma pena, porque há muita dor no mundo.
Jesus, ao aceitar Madalena como discípula, deu-nos uma lição muito clara nesse sentido. Ele não lhe perguntou “que fizeste?”; disse-lhe apenas: “faz!”