Pensando em incentivar a leitura entre os jovens, a professora de ensino superior Ana Paula Horta criou o grupo de leitura “Baleia”. O nome faz referência a uma das personagens mais emblemáticas da história da Literatura Brasileira, a cachorrinha Baleia do livro Vidas Secas, de Graciliano Ramos. Mãe de uma adolescente de 13 anos, e madrasta de dois adolescentes, de 15 e 16 anos, Ana Paula conta que se sentiu preocupada com a imersão cada vez mais prolongada desses jovens nos celulares, buscando assim promover uma atividade que estimulasse a leitura de obras literárias diversas pensando, principalmente, em como a literatura contribuiu para sua própria formação enquanto sujeito.
Conforme narra a professora, com a pandemia esses adolescentes passaram a ficar muito mais tempo que o habitual no celular, devido às aulas online, como algumas crianças de escolas particulares, além de diversos cursos online que eles também estão fazendo. “Muitos deles, por tédio, ansiedade e até mesmo pelo fato de estarem mais tempo em casa, começaram passar mais tempo nos smartphones e computadores, e isso me preocupou muito”, destaca.
Ana Paula conta que ficando mais tempo com a sua filha em casa, a jovem Ana Flor, de 13 anos, ela passou a perceber que a adolescente lia pouco, e que não tinha o hábito de leitura. Sua filha, assim como seus enteados, somente liam os livros obrigatórios da escola, que a professora de literatura pedia no decorrer do ano letivo, mas que se não houvesse a cobrança da docente, não havia também o hábito da leitura, com livro sendo lidos de forma espontânea.
“Comecei a pensar como o hábito de leitura fez parte da minha adolescência, e como foi saudável para passar as tardes em casa lendo, muitas vezes debaixo da árvore no quintal ou sentada em algum canto confortável. Recordo-me de ter lido toda a Coleção Vagalume, que a gente pegava na biblioteca do Colégio, e me lembro como que esses livros e esses personagens não deixavam que eu me sentisse sozinha, como eles me acompanharam no meu crescimento físico, emocional e intelectual”, recorda a professora.
Ana Paula conta que se sentiu insegura em fazer uma cobrança direta a sua filha, não conseguindo desta forma estimular na jovem Ana Flor o hábito da leitura, que tanto fez parte da sua juventude. “Pelo contrário, a cobrança poderia até desgastar nossa relação. Foi aí que eu tive a ideia de criar um projeto e envolver outras crianças, outros adolescentes. Assim surgiu o Baleia Clube Literário, um projeto em que outros amigos da minha filha também pudessem participar e a gente pudesse ler algum livro e conversar sobre essas leituras”, explica.
QUEM É BALEIA?
A professora Ana Paula Horta conta que ao pensar em um nome para o clube, buscou fazer uma referência à Literatura Brasileira. Entre esses nomes, ela revela que uma das possibilidades era Miguilim, mas já existia um grupo em Cordisburgo, cidade de Guimarães Rosa, com este nome. O grupo é formado por adolescentes que declamam trechos do autor para visitantes do Museu Casa Guimarães Rosa.
“É lindo o trabalho deles, por sinal. Também pensei em Capitu, do Machado de Assis, e em outras referências literárias. Numa tarde estava no mercado fazendo compras, aquela atenção redobrada por causa da pandemia, e me veio à cabeça a Baleia, de Graciano Ramos, a cachorra do livro Vidas Secas. Pensei na palavra ‘baleia’, e no imperativo leia, ou seja, era isso que eu queria falar para as meninas e meninos do clube, para eles lerem: leia, leia, leia mais, leia sempre”, destaca a professora.
Conforme Ana, ela pensou sobre a Baleia de Vidas Secas e em tudo que ela representa, não tendo dúvida quanto ao nome do grupo: Baleia Clube Literário. “Não tive dúvidas de que o clube se chamaria Baleia. Quando o autor da à cachorrinha pensamentos, ânsias, sonhos e capacidade de julgar os outros viventes, ele faz dela um ser diferenciado. Não é uma cachorra comum, é alguém que pensa por si. Graciliano Ramos, nesse livro, trabalha muito a questão do outro, o ponto de vista do outro fica evidente na construção dos capítulos da obra. Baleia é subjetividade, é uma consciência ao mesmo tempo individual e coletiva. Sua história é triste, coitadinha, ela é a visão dos derrotados, o ponto de vista dos impotentes, mas ela é também a redenção, o sonho e a liberdade. O clube é uma homenagem a ela e a tudo que nos faz pensar”, acrescenta.
REUNIÕES
Nesta semana o grupo Baleia teve a sua terceira reunião. Essas reuniões, que já contam com 16 adolescentes, acontecem a cada 15 dias, e sempre envolve um convidado que dá a sua contribuição sobre a obra lida naquele encontro. “A princípio, eu fiz o convite para os participantes em um grupo de Whatsapp da escola da minha filha, e houve adesão de algumas mães que gostaram da ideia e convidaram os filhos, pedindo que participassem. Essas crianças, sobretudo nessa faixa etária de 13 anos, manifestaram interesse e, a partir daí, fizemos um grupo de WhatsApp. Nossas reuniões têm sido pela plataforma Google Meet”, conta.
De acordo com Ana Paula, as reuniões já contaram com a presença de duas convidadas, uma delas foi a professora de literatura em São Sebastião do Paraíso, Cristina Peres. “Ela é especialista em tradução, uma professora muito competente. Nós lemos na ocasião o livro Diário de Anne Frank e a Cris-tina nos falou um pouco sobre esse livro e sobre o gênero literário diário. Nós trouxemos a questão do isolamento social”, recorda.
Conforme conta a professora, Anne Frank, uma menina judia vítima do holocausto, é um caso que ficou conhecido mundialmente, sobretudo após ter seu diário encontrado. “A sua família era de judeus que moravam em Amsterdam, na Ho-landa. Eles, durante a Segunda Guerra Mundial tiveram que encontrar um esconderijo para que não fossem capturados e mortos pelos nazistas. E neste anexo onde Anne Frank se escondeu com seus pais e irmã e uma outra família, escreveu um diário em que não só revela as suas angústias, seus sentimentos, os seus sonhos e suas fantasias de adolescente, mas também demonstra maturidade e o entendimento do mundo ao seu redor, das questões políticas e esse pano de fundo, que era a Segunda Guerra Mundial e o holocausto. Então, o Diário de Anne Frank é considerado um documento da história do ho-locausto”, acrescenta.
Ana Paula recorda que, na ocasião do encontro online, a professora de literatura Cristina explicou todo o contexto da obra, e também convidou uma menina judia, residente em São Paulo, de 15 anos, para participar do encontro. “Esta era exatamente a idade que Anne Frank tinha quando as últimas páginas do diário foram escritas. Essa menina de 15 anos nos sensibilizou muito ao dizer que se ela estivesse viva naquela época, provavelmente sendo judia teria sido perseguida pelos nazistas e talvez estaria morta, assim como Anne Frank e tantas outras crianças que foram vítimas do holocausto, que é uma página triste e vergonhosa da humanidade e que jamais podemos deixar que se repita”, ressalta.
“Começamos com esse livro, com essa literatura que é pesada, mas acho que é essencial nos dias de hoje. Nessa semana tivemos uma reunião também com a Carol Ozelin, que é fonoau-dióloga. O tema foi ‘livro livre’, ou seja, ninguém precisava ler um livro específico, e sim o livro que quisesse. Nesta reunião você leva qualquer livro na bagagem e a Carol nos falou sobre a sua paixão pela literatura. A Carol é uma pessoa que lê muito, é apaixonada mesmo pela leitura, muito entusiasmada e nos deixou inebriados com o depoimento que ela deu e que nos deixou com muita vontade de ler cada vez mais”, destaca.
CALENDÁRIO
A professora Ana Paula comenta ainda que o calendário de leituras está fechado até dezembro deste ano, envolvendo diversos convidados e obras propostas por esses participantes especiais. “Teremos ainda outros temas preciosos. Daqui a alguns dias contaremos com a participação de uma psicanalista e discutiremos a obra O pequeno príncipe, com o tema ‘psicanálise, amor e fantasia em O Pequeno Príncipe, de Antoi-ne de Saint-Exupéry’; vamos trabalhar também com Clarice Lispector, com a obra Felicidade Clandestina; discutiremos também Campo Geral, de Guimarães Rosa; Os doze trabalhos de Hércules, de Monteiro Lobato e tantos outros livros que são tão ricos e importantes para nos fazer entender melhor o momento que estamos vivendo, as ânsias que esses adolescentes estão passando nesta idade, enfim, o clube é uma tentativa de doar um pouco do que eu sei, do meu conhecimento, da minha paixão por literatura e me doar a um projeto que sei que pode fazer diferença na vida de tantos adolescentes”, completa.
OBRAS
Além das obras já citadas por Ana Paula, entre os livros que também devem ser discutidos nas reuniões estão: Eu sou Malala, de Malala Yousafzai; A parte que falta encontra o grande O, de Shel Silverstein; e O Mistério da Casa Verde, de Moacyr Scliar.