“Um país se faz com homens e livros”. A clássica citação de Monteiro Lobato nos coloca às voltas com um paradoxo que precisamos discutir se quisermos, como sugere o autor, construir uma nação. Se o país se faz com livros, logo incentivar o acesso à leitura ampla e permanentemente é imprescindível para a formação de sua população. Lobato não poderia supor, ou pelo menos acreditamos nisto, mas tendo em vista o custo de um livro atualmente, que dificulta sobremaneira o seu acesso, como podemos entender o valor de um livro e, ao mesmo tempo, tornar ainda mais difícil a aquisição desse bem essencial na formação dos sujeitos que compõem esse País?
O anúncio feito pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, em que ele defende a reforma tributária e, entre as medidas, o retorno do tributo de 12% sobre os livros, reacendeu uma discussão que desnuda, em muitos níveis, a dificuldade que existe no Brasil em oferecer educação que seja capaz de formar cidadãos críticos e conscientes de sua realidade histórica-sociocultural.
As obras literárias estão isentas de impostos no Brasil desde 1946. Jorge Amado, um dos mais conhecidos escritores brasileiros, sucesso de público e crítica no Brasil e no mundo, conseguiu aprovar emenda constitucional que isentava os livros da cobrança de contribuição tributária. Ainda assim, as taxas referentes ao PIS e Confins continuaram sendo cobradas, passando a ser isentas somente e 2004.
Diante deste cenário, com o anúncio da tributação do livro, nasceu o movimento “Defenda o Livro”, que vem sendo amplamente defendido, não apenas pelo mercado consumidor, mas também editorial, que teme o efeito dominó que o imposto deve acarretar ao produto. Conforme destaca o escritor paraisense, Bruno Félix, vivemos em um país onde tudo é recente: “A democracia, jovem e não raro ameaçada; a libertação dos povos escravizados, que lamentavelmente ainda mantém grilhões de preconceito; a valorização da cultura nacional, das artes e da produção literária após longo período de elitismo e censura”.
Para ele, em um cenário como o nosso, toda e qualquer ajuda para tornar os livros mais acessíveis, mais lidos, mais apreciados, parece ser pouca. “Tão óbvio que me recuso a supor que alguém possa discordar. Apesar de tamanha evidência, nosso atual governo caminha para o sentido oposto ao anunciar a taxação dos livros. Inconstitucional, diga-se de passagem. Guedes ainda afirma que livros são produtos para ‘elite’. Seguirei até o fim da minha vida defendendo que os livros são para todos”, argumenta.
Conforme destaca o autor, em uma rápida pesquisa podemos descobrir centenas de aforismos que afirmam a importância dos livros para a sociedade. “Penso que seria redundante citar o pensamento de poetas sobre o tema, então decidi destacar o pensamento de Bill Gates, pois assim talvez as pessoas mais afeitas ao materialismo decidam abrir a percepção para essa relevância. Disse ele: ‘Meus filhos terão computadores, sim, mas antes terão livros. Sem leitura, os nossos filhos serão incapazes de escrever inclusive a sua própria história’”, destaca.
A professora Ana Carolina Bonacini, ressalta que de acordo com o artigo 150 da Constituição Federal, é vedada a instituição de impostos sobre livros, jornais, periódicos e o papel destinado à sua impressão. “Observando a conjuntura política-social do Brasil e sua historicidade, recai sobre a taxação de livros dificultar o acesso à Literatura e à oportunidade da construção do livre-pensamento por meio dos livros. Dessa forma, cria-se uma sociedade alheia ao debate e suscetível a manobras de um projeto de poder. Se a justificativa para a taxação de livros é de que eles são produtos da elite, vale pensar: por que não tributar grandes fortunas”, questiona.
A professora de Literatura, Cristina Campos, ressalta que o Brasil precisa de uma reforma tributária, mas não é com a taxação de livros que a solução será alcançada. “O país ganhará, a longo prazo, mais com a riqueza gerada com a circulação de obras do que com a tributação em si. Porém não só a economia e o setor livreiro serão atingidos. O distanciamento entre os mais pobres e a literatura certamente se acentuará”, pondera.
Conforme a professa, a história do governo dar livros de graça, sem explicar como fará, soa controlador e limita a liberdade de escolha dentro do universo literário que, segundo aponta, é tão variado e rico. “Quando Paulo Guedes diz que os menos favorecidos economicamente se preocupam mais em comprar comida do que livros, ele pensa que tem razão, já que as desigualdades do nosso país, assim como a crise na educação, como disse Darcy Ribeiro, não é crise, é projeto. Porém, ele certamente não frequenta bienais de livro e muito menos a Flup (Festa Literária das Periferias) para ter uma ideia real de quantos jovens procuram crescer, aprender e ampliar suas oportunidades por meio dos livros”, ressalta.
Para a assistente social, Vanessa de Oliveira, a taxação sobre livros é uma forma de encarecer o produto final à população, além de colocar dificuldades para a sobrevivência de pequenas editoras e comércios, já tão prejudicados pela existência de conglomerados na área. “Em tempos de fake news, nunca foi tão necessário a existência de leitores/as críticos da realidade e, para tanto, é imprescindível a facilitação do acesso ao livro, seja didático, literatura e outros. Tal acesso é condição sine qua non para a educação do povo brasileiro, na tentativa de construção de uma nação diferente da que temos hoje”, opina.
A professora universitária, Michelle Aparecida Pereira Lopes, também ressalta que o custo de um livro no Brasil não é baixo e por isso mesmo é bem difícil para aqueles que não possuem condições financeiras razoáveis adquirirem todas as obras que gostariam de ler. “Dificilmente alguém que precise escolher entre comprar livro e comida irá escolher comprar livro. Esse fato pode ser uma das causas para que os índices de leitura em nosso país sempre deixem a desejar. É uma cadeia de acontecimentos que afastam os sujeitos da leitura e do livro, e nessa cadeia, o preço do livro é um importante elemento”, avalia.
Conforme a professora, percebemos que essa realidade, que já não é boa, sofrerá ainda mais impacto caso o valor dos livros aumente. “Apesar de não ser economista, compreendo que os cálculos noticiados são provas suficientes para compreendermos a necessidade de discutirmos a taxação. Não há dúvidas de que ela aumentará os custos de um livro, tanto os de sua produção, quanto o valor para o consumidor final. Em um país que tem visto a competência em leitura apresentar índices ruins, aumentar o valor dos livros parece ser ir na contramão. Livro não é luxo! Livro não pode ser artigo de elite”, argumenta.
Michelle ainda ressalta a importância do livro: “para alguém apaixonado por livros, assim como eu, não é difícil falar da importância deles, contudo considero importante tratarmos essa questão mais objetivamente. Nas sociedades letradas, e a nossa é uma dessas, o livro é o objeto cultural capaz de condensar práticas sociais, sejam as de utilizadas em sua elaboração, sejam as utilizadas em seu manejo; o livro também condensa representações sociais, isto é, ele as explora e, ao mesmo tempo as refrata”, explica.
A professora destaca ainda que o livro é o objeto que não apenas condensa saberes, mas faz com os saberes circulem – porque há livros em todas as ciências, em todas as culturas, em todas as religiões. “Assim, o livro armazena os registros e os passa de geração a geração – mas também promove a circulação. Se a história humana é marcada pela leitura e pela escrita, por conseguinte, as relações entre a humanidade e o livro são intrínsecas”.
“Como leitora penso bastante em quantos livros deixarei de poder adquirir, caso os valores sejam ainda mais altos. Como professora de uma universidade pública, penso muito na realidade dos alunos: muitos são de família de renda média ou baixa e como esses poderão adquirir os livros que precisarão ao longo de sua formação? Alguém poderia dizer ‘Há bibliotecas!’. Sim, há! Mas elas não possuem exemplares suficientes para atender a todos os alunos de modo satisfatório. E isso também ocorre porque o livro já não é barato. Mais uma vez eu digo: livro não é luxo! Livro não pode ser artigo de elite!”, finaliza.