Por Dr. Caio Antonio José Barbosa Vieira, médico e Dr. Álvaro Pelucio Neto, advogado.
A Cannabis para fins medicinais vem sendo cada vez mais utilizada e gerindo curiosidade e receio em muitas pessoas. Diante de tal fato, resolvemos unir forças para explanar à população, em forma de um diálogo interdisciplinar, acerca do tema que ainda parece muito obscuro. O primeiro passo foi a realização de live via Instagram no último dia 17 de setembro, a qual pode ser acessada na página: @dr.caio.vieira.
Pois bem, agora escrevemos o presente artigo em conjunto para contemplar os leitores do Jornal do Sudoeste. Iniciemos no campo jurídico, fazendo um rápido panorama acerca do proibicionismo da Cannabis Sativa. Durante maior parte do tempo da história da humanidade civilizada a plantação e uso da Cannabis para diversos fins, inclusive medicinal, era prática natural e corriqueira. Interessante lembrar que a fibra do cânhamo – um dos nomes da cannabis e anagrama da moderna palavra maconha em português – foi utilizada para fabricar o papel de impressão das primeiras 136 Bíblias de Gutemberg, era a matéria prima das telas pintadas pela maioria dos renascentistas e deu origem ao termo “canvas”, inglês para “tela”.
Apenas no século XIX, e mais especificamente no caso brasileiro, com a vinda da família real portuguesa para o Brasil, que o racismo começou a gerar a perseguição ao cânhamo, visto que os europeus se assustavam com os ritos africanos dos escravos e viam na erva que os mesmos utilizam para celebrações, mas também para curas, um símbolo do mal. Importante ressaltar, que no ocidente, a primeira lei que criminalizou a cannabis, à época chamada de ‘pito do pango’ foi da Câmara Municipal do Rio de Janeiro, em 1830. Paralelamente na América do Norte, o racismo vinha por parte dos estadunidenses contra os mexicanos imigrantes que possuíam a cultura ancestral do uso do cânhamo.
Já com a proclamação da República, o positivismo implementou-se no pensamento e nas políticas de estado, visto que primeira constituição republicana teve como inspiração a sua correspondente dos EUA. Desta forma o positivismo penal, tendo Cesare Lombroso (psiquiatra e criminologista italiano), instalou-se no Brasil, sustentando que razões biológicas, atávicas e até climáticas (calor, no caso) levavam determinados tipos de pessoas a não respeitarem a ordem, características tais como o tamanho da mandíbula forneciam dados à psicopatologia criminal. Tais teorias inconsistentes influenciaram criminologistas, juristas e médicos, brasileiros e europeus.
O positivismo penal acabou gerando a intensificação do racismo num país que foi um dos últimos a abolir a terrível escravidão. O primeiro Código Penal republicano (do ano 1890), anterior à primeira Constituição (do ano 1891), continha a “Seção de Entorpecentes Tóxicos e Mistificação”, a qual buscava combater cultos de origem africana. Tempo após, o psiquiatra Ro-drigues Dória (1857-1958) gerou enorme influência na criminalização da maconha, sendo que a associou a uma espécie de vingança de negros “selvagens” contra brancos “civilizados” que os haviam escravizado. Em 1921 entrou em vigor o decreto 4294 que punia apenas os traficantes, já em 1932 o decreto 2930 penalizou também o usuário.
O Código Penal de 1940, o qual está em vigor até hoje, apenava no artigo 281 o tráfico, porém em 1968, durante o regime militar, um decreto alterou o artigo 281, equiparando o usuário ao traficante e atribuindo-lhes penas idênticas. Já em 1976, a lei 6368, diferenciou o traficante do usuário com artigos e penas distintas. A atual lei de drogas, de nº 11.343, aborda a ressocialização do usuário, abandonando em parte a visão punitivista e deslocando a questão para o âmbito da saúde pública, desta forma não mais existe pena de prisão para o usuário.
No campo medicinal houve um grande avanço recente, visto que em dezembro de 2019, resolução da Anvisa liberou a venda em farmácias de produtos à base de cannabis e o plantio e pesquisa a ser feito exclusivamente pela indústria farmacêutica. Adentrando o campo médico podemos observar num primeiro panorama histórico, que a cannabis vem sendo utilizada com fins medicinais, de acordo com documentos encontrados, desde o ano 2737 a.c, e teve seu uso médico questionado com o advento do proibicionismo, o qual levou à paralização dos estudos. Existem relatos de que médicos brasileiros utilizavam cannabis medicinal até final do século XIX, para tratamento, principalmente, de asma, bronquite e insônia.
A partir de 1980, em Israel, os estudos tiveram um reinicio tímido, com a publicação de um estudo em conjunto do Dr. Mecho-ulan, com o brasileiro Dr. Carlini comprovando ação anticonvulsivante do Canabidiol (um dos mais de 100 compostos químicos conhecidos como canabinóides encontrados na planta de cannabis). O CBD tem potencial de ação comprovado para diversos sintomas como: Apetite e digestão, Funções do sistema cardiovascular, Metabolismo, Formação muscular, Dor crônica, Aprendizagem e memória, Estresse, Remodelação e crescimento ósseo, Humor, Função sistema reprodutor, Função hepática, Inflamação e outras respostas imunológicas, controle motor, Função da pele e nervos, Sono. Os estudos da cannabis medicinal apontam benefícios no tratamento de diversas doenças como: Autismo, Alzheimer, Ansiedade, artrite, cuidados paliativos, Doença de Crohn, Dor crônica, epilepsia, fibromialgia, Parkinson, Transtorno obsessivo compulsivo.
Também indicam repostas promissoras para tratamento do Transtorno do estresse pós traumático e para recuperação de atletas de alto rendimento. Importante ressaltar que a cautela deve ser extrema e um profissional médico especialista deve ser procurado para cada caso concreto. Em certos casos, os medicamentos derivados da cannabis são os únicos capazes de beneficiar pacientes que não encontraram alívio com os tratamentos tradicionais. Inclusive o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, disse no último 10 de setembro que está em andamento na pasta um processo para que o Sistema Único de Saúde (SUS) passe a oferecer medicamentos feitos à base de cannabis.
Podemos humanizar a questão com o caso de Anny Fischer que com cinco anos e portadora de uma doença chamada CDKL5 (desordem genética rara que atinge apenas centenas de crianças no mundo e cuja principal característica é o aparecimento de fortes convulsões desde os primeiros meses de vida) sofria com 30 a 80 convulsões por semana. A pequena Anny chegou a tomar oito anticonvulsivantes ao mesmo tempo. A maioria das crianças que tem a doença não consegue andar, falar ou sequer se alimentar.
O canabidiol (CBD) mudou a vida de Anny e de seus pais, Katiele e Norberto, segundo o psiquiatra e neurocientista José Alexandre Crippa (pesquisador da USP-Ribeirão Preto), importante pesquisador do tema e que acompanhou o caso da menina, essa substância possui diversas propriedades benéficas comprovadas no tratamento de esquizofrenia, Parkinson, fobia social, transtorno do sono, diabetes tipo 2 e mesmo na cura da dependência de drogas.
Em alguns casos, o CBD tem os mesmos efeitos que medicamentos controlados, mas com a vantagem de não causar sedação nem vício. “Os efeitos nocivos do CBD são poucos e raramente descritos. Isso abre um leque gigantesco para o uso clínico.”, expõe Crippa. Voltando ao aspecto jurídico tratamos agora dos pedidos para obter-se a canna-bis para fins medicinais, sendo que em primeiro lugar devemos explanar a Solicitação Administrativa, a qual deve ser feita via formulário eletrônico junto ao site da Anvisa, com juntada da prescrição médica contendo o nome comercial do remédio a ser importado; tal pedido é analisado em até dez dias. Porém o custo dos remédios à base de cannabis para importação é caríssimo e a maioria das famílias não tem como arcar, sendo que procuram advogados para requer via processo judicial que a União pague o medicamento; o plano de saúde também pode ser demandado em ações desta natureza e o profissional do direito deve explanar ao cliente a gama de documentos a serem apresentados em Juízo.
Por fim existe a possibilidade de Habeas Corpus Preventivos para que pais e pacientes possam cultivar a planta em casa para poderem extrair o óleo e medicarem seus filhos ou medicarem-se, tudo conforme as especificações dos profissionais de saúde que os acompanham. Para que o advogado realize o pedido do Habeas Corpus exige-se a prescrição médica com o CID da doença e dados do médico, o laudo médico relatando todo o histórico da doença e o quadro clínico com todos os tratamentos já tentados e seus efeitos colaterais, e principalmente o relato do médico de inexistência de outro medicamento compatível que gere os mesmos efeitos dos derivados da cannabis. Atualmente já existem quase 100 habeas corpus preventivos para plantio de cannabis com fins medicinais vigentes no território nacional. O assunto atualmente continua em debate na Anvisa, no Congresso Nacional e no Supremo e se espera que em breve tenhamos mais novidades sobre o tema, o qual é polêmico, mas tem um universo de questões e particularidades e envolve a saúde de milhares de pessoas que estão sendo beneficiadas, conforme tantos relatos médicos e pesquisas acadêmicas de sucesso.