Khalil Gibran dizia que todo o trabalho é vazio a não ser que haja amor. Certamente o amor abunda na vida de Dalila Mirhib Cruvinel. As 90 primaveras completadas hoje se somam às inúmeras realizações da mãe, avó, bisavó, amiga e poeta. A poesia, companheira inseparável, a levou para lugares e corações diversos. Após os 80 anos Dalila desbrava novos mares, intensifica a publicação de seus livros, ingressa na Academia Paraisense de Cultura, no Lions Club e na Academia Feminina Sul-Mineira de Letras, tornando-se também sua primeira presidente. Participa de diversas feiras e eventos literários, conta histórias e certamente marca a história de muitos. Recebendo com enorme gratidão e nenhum deslumbre as várias e merecidas homenagens, torna-se nome de biblioteca. Espiritualizada, sábia, coração imenso, generoso e altruísta, Dalila celebra a vida como o presente que ela verdadeiramente o é. Palmas, muitas palmas para a exemplar poeta!
Dalila, quando a literatura entra na sua história?
A verdade é que, há muitos anos, na sala de aula em meus tempos de ginasial no Colégio Paula Frassinetti, acontecimentos expressivos brotavam sob a inspiração de nosso professor de Língua Portuguesa e Literatura, Francisco de Alencar Assis. Mestre de poucas palavras e fina erudição, desfilava escritores, filósofos, dramaturgos, poetas, trovadores, toda uma gama de notáveis, desafiantes às gerações futuras. Por outro lado meu pai, Mathias Mirhib, imigrante libanês, cultor da literatura árabe-persa, e Fábio, o irmão poeta das letras clássicas, foram sementes vigorosas para a paixão por escritores e arte poética. A literatura e a palavra literária são clarões na expressão do pensamento universal, recriando realidades, guardando memórias atemporais, o ponto de partida à busca e ao encontro, extraindo do avesso do homem, profundos enredos escondidos.
Uma vida de muito trabalho e dedicação à família com a literatura e o amor à poesia sempre presentes. Como surgiu a vontade de deixar seus versos registrados em livros?
No delicado e incerto ofício da poesia, o livro solo sempre foi um sonho distante, do qual nunca abri mão. Guardei por um longo tempo, trancado em gavetas, longe de olhares curiosos, tudo o que escrevia, esperançando, sim, na intenção de registrá-los. Em 1997 chega “Cantiga para as Rosas”, abrindo um novo cenário às minhas expectativas. “Mediterrâneo” em 2003, “Marés” em 2015, “Versos Quebrados” em 2019. Em parceria “Paralelas” e “Ciranda” em 2017 e 2018. Em 2021 “Clave do Tempo” e como memorialista “Efemérides Paraisenses – São Sebastião do Paraíso 200 anos”, também em parceria com mais cinco escritores. Voltando à poesia, é o momento em que verdadeiramente esquecemos o tempo que nos envelhece e os intervalos que nos amedrontam. A poesia nos resgata e nos redime, empresta-nos um olhar diferente sobre o cotidiano que tem a pretensão de nos matar. Nasci poeta ou me fiz poeta? Até hoje não encontrei uma resposta plausível ou a encontrei no presente que chegou-me em 2019, a Biblioteca Infantil Poetisa Dalila M. Cruvinel. Coisas do universo, não é?
Após a participação em diversas antologias e a publicação de seus livros de poesia, brevemente virá à lume um trabalho muito interessante em que fábulas clássicas são recontadas sob sua ótica. Como surgiu essa ideia?
Existe um momento na vida que é possível realizar nosso sonho. Assim acontece com meu sonho da adolescência, de reescrever as fábulas e contos. Esopo; Logman, o Sábio; La Fontaine; Monteiro Lobato, Câmara Cascudo... “Fábulas – histórias que guardei para você” é o título do novo livro, gênero literário infanto-juvenil. Minha mãe preta teve muito a ver com esse sonho. Dela adveio a contação de histórias que deram sabor e colorido ao meu mundo do faz de conta. Agora adaptadas como herança às novas e futuras gerações, para que não se perca a magia e o encanto da inocência e da sensibilidade. O livro é graciosamente ilustrado por Iris Pirajá, o que lhe dá um sabor diferenciado. Um registro ao meu bisneto, Matteo Sawanaka Cruvinel Saconeli.
Como foi tomar parte da obra “Efemérides Paraisenses” em comemoração ao bicentenário de nossa cidade. E o que São Sebastião do Paraíso representa em sua vida?
Toda obra literária merece e deve ser aplaudida. Tudo à nossa volta é permanentemente marcado pelo efêmero e atravessa tempos no registro de um livro, tornando-se substância da imortalidade. Se a língua é nosso objeto, o livro é nossa medida. Natural de Cássia, foi em 1938 que chegamos a São Sebastião do Paraíso e aqui cravamos profundas e fortes raízes. A cidade ainda crescia em ritmo lento e sossegado. Aqui estudamos meus irmãos e eu, me formei professora, lecionei, constituí família e eduquei meus filhos como cidadãos. Muito me orgulha ser parte do magnífico processo na construção para o progresso da querida Paraíso. Aceitando seu convite, Reynaldo, para participar com outros escritores em uma obra de vulto histórico como “Efemérides Paraisenses”, faço da minha participação um marco, uma realização e envolvimento em um grande identificador cultural para o município e país, tomando parte nessa história colossal, desbravada em anos e séculos. Muitas vezes como espectadora presente acompanhando a evolução e o progresso, no trabalho árduo, honesto e constante de inúmeras famílias que aqui aporta-ram fincando raízes profundas. Muitos outros vieram e se foram deixando marcas do labor e dinamismo em cada pedaço do chão onde pisamos. Por tudo isso, o “Efemérides Paraisenses” traz o gosto da imortalidade. Sua luz, diferente da luz de velas, é fundida a verdadeira luz, massa do universo de energia e estrelas, e não se apaga nunca.
Ingressar na Academia Paraisense de Cultura e no Lions Club, vivenciar novas experiências pós 80 anos. Se reinventar é importante?
Reinventar sempre, a cada vez mais. Os imprevistos e novas situações se revezam no cotidiano. Situações de saúde, perdas dolorosas, readaptações a novos modelos. Descruzamos os braços e partimos em busca de ganhos para superar as perdas. Em 2017 assumi a cadeira nº 10 na Academia Paraisense de Cultura. Participo ativa na comissão de Literatura, no Coral Maestro Lucas Bertucca Filho e no Projeto Conhecendo a APC como contadora de histórias. Também faço parte do grupo Sarau Literário com amigos literatos. O Lions Club chega como um presente na convivência gratificante com pessoas queridas na disposição de servir. Voluntária na ACCa, Associação de Combate ao Câncer, desde a sua fundação em 2000 pelo enorme idealismo da Rosângela Elias. De minha parte sempre estarei em dívida com Ele, de quem recebemos coisas maravilhosas, inclusive a convivência com seres humanos incríveis. As palavras: gratidão e esperança. Da passagem por cá quero só a certeza que tive tudo o que pude e perdi apenas o que nunca foi meu. Estar viva é sensacional!
Como foi receber o convite para se tornar a primeira presidente da Afesmil – Academia Feminina Sul Mineira de Letras. Quais as atribuições da instituição e como tem sido essa experiência?
Em 2020 sou surpreendida com o convite para fazer parte de uma associação cultural literária a ser fundada, a Afesmil, oficializada no dia 24 de maio de 2021. Mais surpreendida ainda pelo convite se estender à presidência da mesma. Aceito o desafio como nova experiência e aprendizado. A Afesmil conta em seu quadro de 40 acadêmicas e respectivas patronas, mulheres intelectuais empenhadas e voltadas à literatura feminina, em prosa e verso. É um espaço onde se desenvolve a nossa cultura, sendo seu papel cuidar para que nosso patrimônio cultural se mantenha vivo, presente em seu acervo, nas bibliotecas públicas e comunitárias, escolas e universidades. Somos premiadas com o florescimento da instituição, conectando as letras da Afesmil com o continente e com o mundo. “Estação Poesia”, nossa primeira antologia poética, está a caminho, reunindo o trabalho de todas as acadêmicas.
A espiritualidade sempre esteve muito presente em sua caminhada. O que ela representa?
Todas as experiências sagradas servem a nos transformar. A espiritualidade representa fonte pura de águas cristalinas no despertar consciente, lógico e racional. Meu pai, cristão maronita, tinha um livro interessante de um padre jesuíta que tentava unir suas crenças à ciência. Foi esse filósofo e paleontólogo que despertou-me ao primeiro contato com a espiritualidade. Seu nome: Teilhard de Chardin. O que ele me trouxe? “A espiritualidade é apenas uma e é para os que estão despertos. É encontrar Deus em nosso interior durante a vida. Não somos seres humanos passando por uma experiência espiritual. Somos seres espirituais passando por uma experiência humana”.
O que as primaveras trazem de mais precioso? E qual a maior lição que aprendeu nesta jornada?
Cada estação da vida tem sua experiência e o seu encanto. Assim as primaveras chegam, estação da alma onde tudo exige renovação. Quem tem o privilégio de viver muito tempo, sabe que o tempo é um mestre caprichoso. Sempre é hora de plantar sentimentos capazes de nos tirar do estado lamentável em que nos colocamos ao aceitar o inverno, acompanhando com os passos firmes, cada momento de celebração. Progredindo no aprender, curando velhas feridas, renovando-se a cada estação, na liberdade que nos é presenteada pela magia da vida.
Generosidade, altruísmo e leveza, são características marcantes de sua personalidade. Acha que as trazemos ou elas podem ser trabalhadas?
Tive o privilégio de nascer de pais generosos e altruístas, comprovando exemplos cristãos dignificantes de amor às pessoas sem distinção de credo ou raça. Seus exemplos mais que do que palavras, foram reforçados pelo livre arbítrio, presente que recebemos gratuitamente, possibilitando-nos as escolhas. Caímos e levantamos com novas oportunidades para prosseguir. Assim podemos ignorar ou trabalhar os traços da personalidade.
Qual o segredo de chegar a esta idade tão plena?
Não há segredo, somente parcerias e cumplicidade com o tempo. Não podemos deixá-lo passar impunemente. O gosto pela vida precisa ter a presença obrigatória ao dia a dia, sentindo a felicidade de ser quem é, o que representa, atenta aos tempos verbais do corpo. Literalmente sem medo de ser feliz, olhando de fora para dentro, lembrando-se que, pedras, espinhos e folhas secas, são os melhores mestres, aqueles que fazem o treinamento da sinfonia humana e pessoal.
Dalila, qual o sentido da vida?
O sentido da vida é questionado envolvendo definições religiosas, teológicas e opiniões de buscadores. Assim, não há uma vertente única. À luz da espiritualidade, o sentido da vida é a evolução dos seres humanos. “Somos na humanidade total, milhões e milhões de seres, viajando do instinto para a inteligência, da inteligência para a razão e da razão para a angelitude”. (Emmanuel)