ELA por ELA

Angelina Queiroz

Por: Reynaldo Formaggio | Categoria: Entretenimento | 30-10-2022 09:06 | 2497
Angelina Queiroz Carvalho
Angelina Queiroz Carvalho Foto: Acervo Pessoal

O artigo 5º da constituição assegura que “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade(...)” As religiões, em sua ampla maioria, também propagam que “todos somos criados por Deus e amados por Ele”. Então cabe a pergunta: por que tanto desrespeito, intolerância, violência e mortes? A transexualidade é uma das diversas possibilidades de identidade de gênero. Quando falamos em transexualidade, falamos sobre pessoas que biologicamente nasceram com caracteres físicos relacionados a um gênero, mas se sentem e se compreendem no outro gênero. E não, assim como a orientação sexual, isso não é uma doença. E não deveria causar tanto incômodo, afinal, trata-se de algo na vida de alguém que não afeta diretamente a vida de outrem. Informação, igualdade e acima de tudo, respeito. Condições primordiais para vivermos em uma sociedade mais humana, fraterna e justa. Confira a trajetória de Angelina Queiroz Carvalho. Filha, amiga, trabalhadora, mulher trans e, acima de tudo, um ser humano que luta diariamente para conquistar seu espaço e afirmar sua existência.

Angelina, como foi sua infância? Já se percebia diferente em relação às outras crianças? Teve acolhimento familiar?
Primeiramente tenho que agradecer a Deus e o universo por me darem a sublime oportunidade de ter uma base familiar incrível e cheia de amor. Isso sempre me deu força e inspiração para poder lutar contra os obstáculos e preconceitos da sociedade. Nasci há 23 anos em Pratá-polis e vim pequena para São Sebastião do Paraíso. Minha infância foi um nítido reflexo de minha educação e criação. Respeito e educação sempre! Dizem meus pais, Osmar e Eliana, e isso abriu portas para minha forma de me colocar diante das outras crianças e demais pessoas, que sempre fui muito delicada e trazendo traços diferentes e contrários do “padrão” para uma criança do sexo masculino. E isso sempre foi alvo de questionamentos familiares e públicos. Só que a grande diferença é que nos questionamentos familiares houve o chamado amor incondicional, superando os medos e futuros obstáculos que isso traria para minha vida e consequentemente para a minha família. Todo pai e toda mãe que se prezam amam sua criação e sempre a colocam em primeiro lugar, a todo custo irão defendê-la. E mais uma vez agradeço também pelo fato de nunca ter sofrido nenhum tipo de violência. Meus pais e meu irmão, Samuel, conversavam comigo da forma mais sensata possível, explicando as consequências das escolhas que eu teria para a adolescente e depois futura mulher que viria a me tornar. Posso dizer que tamanha inteligência e delicadeza em suas falas e comportamentos sempre me deram força para poder seguir sem medo. Poder ser feliz como uma criança “normal”, com sua doçura e inocência, que infelizmente perdemos ao longo do nosso crescimento. Meus traços e jeito foram sempre visíveis, mas pela forma que eu os mostrava e como minha família lidava, eles se tornaram algo “secundário” aos olhos de todos. Então fui seguindo dessa maneira até a adolescência, onde realmente, diante das minhas reflexões e questionamentos internos, me decidi sobre o que eu buscaria para minha felicidade.

Outro ponto importante é aquele que tange à colocação no mercado de trabalho. Já sentiu alguma dificuldade nesse sentido? O que você acha que poderia ser feito para melhorar?
Um dos maiores tabus a serem quebrados é esse da questão de dar a oportunidade de um trabalho para uma pessoa LGBTQIA+, ainda pior para uma pessoa trans. Hoje em dia grandes empresas e marcas estabelecem a abertura para essas pessoas, e isso foi um salto exponencial para nossa luta. Mas ainda vemos muitos obstáculos quanto à nossa comunicação com os clientes e a sociedade, fazem questão de envolver sua orientação sexual e gênero como fundamento de sua capacidade e de sua energia (boa ou ruim). Julgamentos como o de sermos piores porque somos frescos, somos pecaminosos, somos aberrações, somos sempre a diferença, infelizmente fazem parte da nossa relação com determinados clientes e pessoas, anulando toda a vontade e determinação, acima de tudo a luta que já foi para se estar ali e ainda continuar.  Isso acaba sendo colocado da pior maneira, ferindo sentimentos. Um gay ou uma lésbica podem ter mais “facilidade” em se enquadrar nos padrões físicos e comportamentais da sociedade do que uma pessoa trans, que é sempre um grande escândalo e absurdo aos olhos fechados e ignorantes daqueles que sentem o medo do diferente. Então sim, existem inúmeras lutas para se conseguir um emprego e mais ainda quando se consegue e você tem que se manter mais firme e forte, fisicamente e principalmente psicologicamente para lidar com o fato de ter que provar constantemente que suas escolhas não fazem de você pior ou melhor que os outros.

Você falou em gênero e orientação sexual. Poderia explicar melhor sobre estas definições?
Primeiro tem o sexo biológico, que é como você nasceu: masculino, feminino ou intersexual. A orientação sexual é por quem você sente atração: hetero, homo, bi, pansesexual ou assexual. E identidade de gênero é a maneira como você se enxerga: homem, mulher ou transgênero.

Ainda sobre a questão do trabalho. Você está em uma entrevista de emprego, o que gostaria que enxergassem em você? O que tem de melhor a oferecer?
Não quero que minhas qualidades, como ser uma boa companheira de equipe, organizada, fiel e dedicada a dar o meu melhor não só no meu trabalho, mas em todo os ambientes, sejam anuladas durante todo o tempo por conta de quem eu gosto ou como me enxergo no espelho. Isso acaba sendo a maior das injustiças, não só para mim, mas para o mundo que perde o melhor de mim. 

Você acha que os direitos dos LGBTQIA+ (lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, transgêneros, queer, intersexuais, assexuais e +) e as políticas públicas para este grupo avançaram nos últimos anos?
Vejo uma grande melhora nas leis para nossa comunidade e suas aplicações também, mas ainda vislumbro uma grande caminhada na questão da aceitação delas na sociedade. Do que adianta ter todas as leis e políticas possíveis se de alguma forma é buscado um caminho divergente para atacar, diminuir e anular toda essa luta por parte de determinadas pessoas?! Todos os olhares, agressões físicas e psicológicas, mesmo sendo proibidos, mas buscados descaradamente de outras formas para nos atacar? A questão não é só ter leis, ter políticas públicas, mas ter mais espaços, não só físicos, mas de todas as maneiras possíveis para o entendimento e o principal, o respeito.

Erika Hilton e Duda Salabert são as primeiras travesti e mulher trans, respectivamente, eleitas para a Câmara dos deputados. Qual o significado disso?
Fico imensamente feliz com a ocupação de pessoas trans dentro de espaços como estes que antes era visto como algo absurdo e inalcançável. Ver que nossa comunidade anda caminhando cada vez mais unida para essa luta é algo que me dá cada vez mais força de prosseguir e lutar. Mas também me lembra que se conseguimos algo, é porque em sua quase total maioria, esse apoio e luta vieram de nós mesmos, e não daqueles a quem pedimos o mínimo: o respeito e educação que qualquer um merece. Por isso torço com todas as minhas forças para que mulheres como elas se mantenham cada vez mais firmes para nos trazerem o mínimo de paz e respeito possível, para nossos corpos horrivelmente sexualizados, para nossas almas ceifadas de sua doçura, para nossa incrível força negada de sua bravura e para nossa história radicalizada pela obstinação e julgamento da sociedade.

Falando em política, estamos na véspera do segundo turno de uma eleição importantíssima para afirmação de nossa democracia. Quais os critérios você acha importante o eleitor se basear para definir seu voto?
Fico muito decepcionada com o ponto que chegamos e tratamos nossa política. O descaso por conta de inúmeras decepções se tornou muito maior que a vontade de querer o bem de toda nossa nação. Se pararmos para analisar, a resposta é a mais boba possível, a voz do povo é a voz de Deus. Então porque não revolucionar e impor os valores mais humanos e democráticos possíveis, não só nessas eleições, mas em todas as outras, e em todos os lugares? A política não é só uma data no dia da eleição. A política é a luta em toda sua amplidão, pois se refere a cada um de nós e seus direitos e deveres um para com o outro. Devemos lembrar que democracia é para todos serem encaixados da melhor e mais acolhedora maneira possível, sem ódio, sem preconceito, sem ditadura, sem polarização. É a balança da justiça em equilíbrio com a humanidade que vive em cada um de nós, mas que ousamos desafiá-la diante a cega verdade que criamos para nós mesmos, para nossa ignorante, desumana e egoísta proteção. Então em todas as eleições, em todos lugares e com todas as pessoas por este país, seja humano, honesto e real consigo mesmo e com os outros. Seja amor, para assim poder não só discutir política para nosso bem, mas o mais importante, exercê-la em sua grandiosidade, visando a unificação e proteção de todos.

Vivemos em um estado laico, mas muitas vezes vemos o uso da religião para segregar e não aproximar as pessoas através do amor e da compaixão.  Como combater o ódio e a intolerância?
Diante a concepção e disseminação dos conceitos religiosos no nosso país e no mundo todo, muitos se perderam nos reais valores humanos e acabaram transformando a fé, que deveria ser nossa verdadeira essência de esperança, em arma para as divergências e obstáculos da convivência. Falas e conceitos de ódio e negação se tornaram escudos para a não aceitação do outro. Estamos aqui por amor e é com ele que devemos prosseguir nossa evolução.

Angelina, qual seu maior sonho?
Meu maior sonho é ver a humanidade mais verdadeira em suas ações. Ver doçura e inocência, não como uma forma de fraqueza, mas de reciprocidade. Sonho em ver comprometimento com nós mesmos e nossos verdadeiros sonhos, batalhas, dores e amores. Porque sem isso seremos apenas parte da potencialidade de nossa luz e às vezes mascarada por medos e suas perigosas reações. Sonho em ver mais amor, mas dessa vez sem fantasias ou guerras, apenas a crença Nele e de que isso é o principal. Sonho em ser uma mulher linda e livre, desejada pela beleza de minha inteligência e pela forma com que consigo amar e resplandecer isso no meu dia a dia, nas pessoas e no mundo ao meu redor. Sonho em um dia poder olhar para trás e ver que tudo isso se tornou real, parte de mim e de minha história.