• CONVERSA FORA •

Imprevisão de tempo e Em memória

por Murilo Caliari e André Pádua
Por: . | Categoria: Do leitor | 31-07-2024 00:12 | 139
Foto: Arquivo

Imprevisão de tempo 

por André Pádua

— Mamãe, faz parar de chover?

— Meu bem, eu sei que não é bom, sei que entristece a gente. Mas chuva é assim mesmo, tem que esperar passar. Calma, paciência, não deve durar muito – respondeu a mãe com a culpa de quem havia se informado mais cedo, pelo noticiário, de que os temporais possivelmente insistiriam ainda por alguns dias. Irresignada, a pequena foi recorrer à outra autoridade da casa:

— Papai, por favor, faz parar de chover?

Sem tirar os olhos do telefone celular, o homem de feições ensimesmadas replicou, com apressada doçura, que “filha, agora não, papai está ocupado com as contas de casa”, mas que jajá iriam assistir juntos aos desenhos na televisão, combinado?

Quando o tio chegou com os primos para uma visita, momentos depois, o desalento das sucessivas respostas negativas pareceu dissipar-se com o sopro de um novo frescor:

— Tio, será que você podia fazer parar um pouco essa chuva?

— Parar a chuva? Que ideia! A lavoura está precisando de água. É bom que continue chovendo assim por mais uns dias.

Com as esperanças já minguantes, dirigiu-se à prima mais velha com aquela mesma súplica, já batida e gasta de tão repetitiva. Provou, como resposta, da acidez de uma risada debochada, acompanhada de um gesto de repelimento – “Já passou da hora de crescer né?”. Olhou, então, para o primo mais novo: que poderia ele fazer além dos demais? É apenas um bebê que mal sabe falar o próprio nome; se não era capaz de se opor a suas pretensões, como fizeram os outros, tampouco conseguiria lhe prestar qualquer auxílio que fosse.

Cansada da dura lida de quem reivindica o impossível, resolveu que o melhor mesmo era ir se deitar. Mas não, definitivamente não como um gesto de abatimento: dormir seria sua última e extrema medida, a luz que permanece quente e acesa quando as demais já se foram. E assim fechou os olhos, convicta de que o rumo inevitável de seu sono seriam os horizontes do sonho.

No decorrer de algumas horas, o azul da manhã emergiu tão profundo que não restou às nuvens outra alternativa a não ser se esconder, com timidez e reverência.

Em memória

por Murilo Caliari

É difícil falar. É complexo falar nessas horas quando o bicho pega. Evito velórios por não saber devidamente prestar condolências. Acho que o momento difícil de quem sente a perda de alguém deve ser respeitado no silêncio. Minutos e dias de silêncio. E se alguém quer e precisa falar mantenho os ouvidos alertas.

Hoje sou eu quem sofro com a passagem de alguém querido. Talvez pela maneira silenciosa na qual dividimos espaço e nos pequenos gestos de amizade e generosidade foi que tanto me aproximei dessa figura. Uma presença, no sentido mais íntegro da palavra. Paulo Cesar ou Sapinho se foi ontem. Desconheço os detalhes da sua partida. Embora eu soubesse que ele enfrentava uma doença severa, não me atinei de que fosse pra outro plano de maneira tão desavisada.

Hoje, domingo, meu dia de descanso, permaneço recolhido buscando relembrar nos momentos felizes que partilhamos. É certo que amanhã a cidade nascerá menos contente. Sua lembrança será uma cadeira de engraxate vazia sob a sombra duma árvore enfeitada.

Cabe aqui um relato rápido da nossa parceria. Algumas vezes, de modo meio frustrante - mas não patético -, montei uma mesa com trabalhos e livros de segunda mão à venda. Era a maneira que encontrei de espalhar minha arte pros transeuntes. E ninguém se dava ao trabalho de parar pra ver. Nesses momentos me via invisível, inviabilizado. Eu montava essas feirinhas pensando numa música do Sérgio Sampaio, Cada lugar na sua coisa. “Lugar de poesia é na calçada, lugar de quadro é na exposição”.

E esse engraxate me acompanhava e estimulava na investida poética e expositiva, ficava ao meu lado. Vendo o vento passar. Me ajudava a montar e recolher o trabalho posto na mesa. Diria ser um alívio ele acreditar naquilo que eu buscava querer investir. Ele estava lá, sempre ali. Vivo que nem uma árvore que sente e vê namorados nos bancos.  Que sente corações sendo cravados no tronco dessa árvore da vida.

Senhores em roda, apostando nos bichos, ciscando pedaços do chão como pombos. Senhores que se encontram diariamente pra arrancar da rua toda a prosa possível, em torno dessa árvore que era o Sapinho. Eles estavam lá pra falar sobre quem nasceu, quem casou, quem morreu, quem fez o que e quem viveu.

Presto aqui meus sentimentos a quem também sentiu com essa partida. Viva o Sapinho!