• CONVERSA FORA •

Sem açúcar, com afeto e Solto no mundo como na primeira vez

por Murilo Caliari e André Pádua
Por: . | Categoria: Do leitor | 07-08-2024 00:06 | 171
Foto: Arquivo

Mais uma semana fica pra trás e outra vem na frente. Com mais dois textos, queremos desejar um bom dia para você que nos lê. Sem mais delongas, vamos lá:

Sem açúcar, com afeto

por André Pádua

- Senhor, boa tarde. Me desculpe o incômodo, mas como forma de complementar a renda de casa no mês eu estou aproveitando o fim de semana para vender estes bombons. Minha esposa mesmo que faz, é receita antiga de família e eu garanto para o senhor que não tem quem faz igual por aí. Cada unidade é cinco reais, mas a partir da compra de três bombons eu consigo fazer o preço de cada um a três. Tenho os sabores morango, brigadeiro, coco…

— Parece mesmo muito bom – amarelou o interlocutor como resposta –, mas eu não vou querer, agradeço muito…

— Tem certeza? Por que não pensa bem? Olha, além dos sabores que eu já te falei, ainda tenho o de maracujá, que é feito da fruta que a gente mesmo planta na roça, sem agrotóxico e com muito carinho. E o pagamento pode ser feito em dinheiro, cartão ou pix…

— Sinto muito, mas é que eu não posso com doce…

Não se fazendo de logrado, e com a inventividade espontânea dos vendedores determinados, resolveu aproveitar a deixa de pouco mais de um metro que timidamente segurava as mãos daquele homem dietético. Virou-se sorridente para a garotinha, agachando-se para ficar à sua altura e ofereceu-lhe o recipiente onde os delicados quitutes estavam acondicionados:

— Mas será que não vai ter nem umzinho para essa mocinha linda que mais parece uma princesa?

A criança, demonstrando um adestramento robótico, de quem havia sido ensinada – ou melhor, programada – para rejeitar sumariamente aquele tipo de oferenda sem qualquer margem para concessões, murmurou por detrás do rosto escondido por vergonhosas mãozinhas:

— Não quero, moço.

— Filha, papai já ensinou que também quando não aceitamos é educado agradecer, dizer obrigado... – e virou-se para o vendedor, enquanto a menina parecia sumir dentro das próprias mãos – Sabe o que é? Assim como eu, ela também é diabética.

Sentindo o amargor e solidão daquela infância, o vendedor saiu sem sequer se desculpar, coisa que irrefletidamente fazia quando recusavam seus bombons. Se não tivesse agido rapidamente, era capaz de ter deixado alguns trocados de compensação para a pobrezinha e, definitivamente, ele estava ali para ganhar, e não para gastar.

Solto no mundo como na primeira vez

por Murilo Caliari

Ávido me coloquei em vários lugares, mantive-me em pé. Colocando-me em cada proposição do universo. Eu, uma pessoa qualquer, fico ali aproveitando da visão. Esse milagre oportuno que me esclarece o entendimento e a postura. Se eu pudesse, passaria o dia inteiro sentado olhando a rua. E às vezes eu posso e fico. Eu fico lá, como um estranho no mundo de aberrações e formosuras.

Por que a gente esquece da vida? A cidade é um formigueiro ativo. Eu sou dois olhos alertas, eu sou um descuido e uma passagem. Quem senta comigo fala um tanto. Ouço com amor e compostura. Me interesso. Não porque sou bom, mas pela curiosidade que meu coração responde. Às vezes tento olhar como se fosse a primeira vez. Olhar pra uma cadeira como se nunca tivesse visto uma cadeira.

Quem dera me houvesse sempre a fartura da sorte de principiante. Eu amei tanto nessa vida que já sinto meu coração devastado. Eu já fui tão desagradável que nem merecia existir. Mas acredito ainda na cura pela ressaca e numa força estranha da natureza que mantém a gravidade e a leveza.

Eu queria ser você. Queria me ver pela primeira vez porque eu te amo como nunca amei ninguém. E isso não é papo furado, estou encostado num bar, em pé. Como na primeira vez que andei.