• CONVERSA FORA •

Elogio à distração e Rascunho do argumento para filme de mistério

por Murilo Caliari e André Pádua
Por: Redação | Categoria: Do leitor | 13-08-2024 01:11 | 148
Foto: Arquivo

Elogio à distração

por André Pádua

A cada dia que passa, mais firme tenho comigo que a vida só acontece pra valer enquanto estamos distraídos. É como se as coisas, nos espiando pela fresta, aguardassem por aqueles momentos em que estamos com a cabeça pelas bandas de lá para finalmente se desdobrarem e tomarem seu rumo. Em contrapartida, os fenômenos e acontecimentos sobre os quais nos concentramos e nos detemos parecem se recusar a acontecer, só de pirraça, quando percebem nossa fixação sobre si. Num ato de rebeldia, agem de forma não responsiva à sua vocação aventureira de decorrer, com o objetivo de nos mostrar quem é que tem a palavra final.

Já reparou como a noite troca, sem resistência, de lugar com o sol enquanto dormimos? Por contraste, são insuportavelmente infinitos os escuros momentos de madrugadas insones, que se comportam como soldados que marcham sem sair do lugar, à revelia de nosso aguardo pelo dia que há de acontecer. Suspeito que a referida contradição se dá justamente porque, quando dormimos ou nos deixamos levar pela força de estímulos presentes, não tracionamos o mundo com a força do nosso querer – um impulso tão insistente quanto anêmico, diga-se de passagem, já que se alimenta da faminta ilusão de que podemos ser decisivos no curso dos acontecimentos. E assim, livres de qualquer tensionamento, causado por aquilo que outrora era tração e agora se tornou, enfim, distração, propiciamos aos fenômenos a plena liberdade para caminhar, em seu tempo natural e sem ponteiros, de acordo com a inconsciência deliberada da ordem natural das coisas.

E olhe só como funciona. Distraído você leu o que distraído escrevi, enquanto deixávamos correr a vida lá fora. Na imensidão desse breve descuido, as coisas se rearranjaram de tal maneira e segundo uma tal disposição que agora demandam a mim (e, provavelmente, a você também) o fim desta crônica.

Rascunho do argumento para filme de mistério 

por Murilo Caliari 

Uma Kombi estacionada. Um prédio.

Distância de uma rua. Câmera em zoom out.

Uma moça sai do prédio, fuma um cigarro, pega encomenda com homem misterioso no horário marcado e sobe pro prédio.

Outra take:

Ela fala com uma senhora, gesticulam. O diálogo não é audível. Surge legendas da conversa frívola.

 A Kombi continua lá.

Vidros escuros. Do outro lado da rua.

A câmera filma os dois lados da rua. Ambas perspectivas.

14:53

A moça sai do prédio. Embrulho na mão. (Inserir descrição da vestimenta) Câmera corta e segue a moça. Ela atravessa a rua, vira a esquina.

Loja de consertos.

Ela entra na oficina de consertos de microondas sem falar com o homem que utiliza uma solda pra consertar forno elétrico, sobe escada em caracol, volta e sai sem o embrulho. A câmera insiste no conserto do homem que se chama Carlos.

Ela sai. Voltamos pro seu trajeto. Ela para numa rua onde tem vários livros no chão. Olha e observa. Escolhe um. Abre a carteira, tira uma nota e leva o livro cujo nome é: “Vida, modo de usar”.

Ela está na casa dela lendo o livro. Ela adormece. O abajur está aceso. Assistimos ela dormir, como se estivéssemos dentro da casa dela, a câmera não está estável, sentimos movimento e ouvimos a respiração da pessoa que filma.

Kombi. Madrugada. Sai uma mulher da Kombi. Ela está vestida toda de preto e segura uma câmera de vídeo.

Ela atravessa a rua e fala com o porteiro do prédio.

Ela entra no prédio. Ela filma as caixas de correio. Ela abre uma caixa de correio do apartamento de X e tira uma carta, abre a carta e o texto aparece em evidência.

“X, o mundo é perigoso, sempre penso que a tv está me assistindo, sempre penso em você lendo meu diário. Não sei onde estou. Envio essa carta pra me apoiar na caneta, tenho medo de cair em desordem...” Começa o texto em off e assistimos cenas de transeuntes e do trânsito dos carros na cidade.

Fim da primeira parte.