ENTRETANTO

O Último Entretanto

Por: Renato Zupo | Categoria: Justiça | 23-11-2024 04:58 | 192
Renato Zupo
Renato Zupo Foto: Arquivo

Era o ano de 2001 e eu recém ingressara na magistratura. Estava então na minha primeira comarca como juiz titular, São João Evangelista, no leste mineiro, quando fui procurado pelo jovem editor do jornal Folha Regional de Governador Valadares, o Sr. Elias da Silva. Sua ideia era criar uma coluna periódica que tratasse das dúvidas jurídicas e notícias relacionadas ao Direito, deslindadas por um jurista. Conhecia meus textos de publicações acadêmicas e sentenças e os achava descomplicados, de fácil compreensão. Em suma, eu sempre escrevi simples e claro e ele reconhecia isso – e me queria para a empreitada.

Foi assim que ganhei uma coluna quinzenal na Folha Regional, que depois se tornou semanal e continuou a ser publicada por lá, mesmo quando fui promovido para Araxá e, por aqui e até hoje, a coluna permaneceu ativa por quase duas décadas,  primeiro no Correio de Araxá de Atanagildo Cortes e Família, depois no Jornal Integração de Mauricinho e Armindo Maia – com divulgação nacional através da Rádio Jovem Pan e do  Youtube.  Também passei a ser publicado pelo Jornal do Sudoeste, de São Sebastião do Paraíso, do meu bom amigo Nelson Duarte – escolhas que fiz e que fizeram por mim e sempre me deram muito orgulho.

Me tornei depois escritor, palestrante, professor universitário, mas tudo começou ali naquela coluna periódica de jornal impresso. Com a tecnologia ela se transformou (também) em um blog e em um programa de webtv, em diversas plataformas, e lá se vão quase vinte e cinco anos de “Entretanto” – que todos vocês já conhecem.

Foi através do Entretanto que aprendi a escrever mais simples ainda, a alcançar o povão, o leigo, as pessoas carentes de notícias palatáveis e inteligíveis, que até então consumiam informação distorcida sem a dissecar criticamente, porque produzida por ignorantes do assunto ou gente tendenciosa, ou ambos. Além de me ensinar a escrever para o grande público, o Entretanto ensinou a este grande público a compreender melhor as coisas do Brasil e do mundo à luz do Direito, tudo exposto de maneira fácil, descontraída, divertida, imparcial.

Mas o Brasil e o mundo mudaram muito neste quarto de século. A política se polarizou e as pessoas desprenderam a respeitar o pensamento alheio, às opiniões divergentes e ideologias adversas. De repente, perdemos o direito à imparcialidade, qualidade que o Entretanto sempre buscou obstinadamente angariar e manter. Apanhei muito todos estes anos: do público conservador e de esquerda, de militantes políticos e diletantes, gente que simplesmente não compreende o fato de que este espaço não é um palanque político ou uma arquibancada de torcida organizada.

Apanhei de bolsonaristas, por criticar o bom capitão durante a pandemia da Covid 19. Apanhei de Lulistas, quando disse de sua política claramente voltada ao comunismo e ao Foro de São Paulo. Também tomei pancada da direita quando critiquei a condução coercitiva (e desnecessária) de Lula para depor a Sérgio Moro durante a Lava Jato, como critiquei o processo que condenou Lula e o colocou preso por mais de um ano – uma aberração  jurídica que foi tardiamente anulada. Aliás, também abominei Moro e Dallagnol botando as manguinhas para fora no mundo da política partidária e fui obrigado a questionar a diversos pronunciamentos dos nossos Ministros do STF.

Ser imparcial e criticamente técnico é isso, gente. É apontar o que está inadequado à luz do Direito e da Constituição, seja para que lado for – só que perdemos a capacidade de enxergar que não há heróis e vilões no mundo político. Há gente que pensa diferente, e viva a diferença! Então, eis que surge uma mordaça até então impensável,  inimaginável, uma vigilância que nos patrulha a todos. De repente, passaram a existir assuntos proibidos e informações que não podem ser veiculadas, raciocínios que não podem ser expostos e opiniões de divulgação proibida.

Vivi o final da ditadura militar – servi ao Exército Brasileiro no  momento em que o último presidente militar, João Figueiredo, devolvia o poder a um civil, José Sarney, porque o eleito Tancredo Neves estava moribundo e acabaria não sobrevivendo àquela sucessão presidencial. Nem naquela época havia percebido uma cultura de negacionismo e silêncio como agora. De uma hora para outra se está proibido de pensar e manifestar opinião fora da caixinha do sistema. Ninguém consegue mais lutar contra o sistema, não com ferramentas jurídicas, saberes, conhecimento e leis. Não há democracia que possa ser defendida sem democracia. No regime militar que mencionei, enquanto militar que fui, falava-se de tudo dentro da caserna. Solfejavam-se músicas revolucionárias dentro do quartel e falava-se mal do governo em plena ordem unida. Meu pai, comunista de carteirinha, nunca foi incomodado por ser fã da Cuba de Fidel Castro e Che Guevara, durante o regime militar.

Bem, você já sabe, as coisas mudaram muito. E há uma indagação que sempre faço por aqui e ninguém responde: quando todo mundo falava e pensava de um lado só, tudo se podia falar e pensar. Quando só se dizia das faltas de liberdade da ditadura, das torturas e presos políticos, todos podíamos falar tudo: juízes, promotores de justiça, jornalistas, formadores de opinião. Bastou que se descobrissem bifurcações da concepção histórica do mundo político recente, e a isto se divulgasse, para que surgissem versões proibidas e tópicos antidemocráticos, gabinetes e discursos do ódio – e, é claro, as famigeradas “Fake News”. Tudo que o sistema não aceita vira “Fake News”.

E não é possível lutar contra o sistema, aparelhado como é, em todas as esferas de poder. Ainda que o conteúdo do Entretanto seja somente didático e técnico, conquanto divertido, passei por isso a ser muito vigiado, criticado, investigado. E cansa muito, exaure, tentar demonstrar o tempo todo que se é imparcial e se busca somente entretenimento de qualidade com os textos e falas deste blog, que é coluna e programa de Youtube. É exaustivo ter que demonstrar o tempo todo que se tem bom coração, boas intenções e boa fé – o que deveria se presumir em um verdadeiro Estado Democrático de Direito.

Cansei de ser um Dom Quixote, porque os moinhos de vento agora mordem, prendem, bloqueiam suas contas bancárias e te banem de redes sociais, te exilam do Brasil, te exoneram. Pensar fora da gaveta se tornou exponencialmente letal para aqueles que, como eu, se dão ao luxo de não possuírem times políticos ou ideologias fanatizantes. Pessoas que simplesmente pensam o mundo politicamente, sem ardores, humores e amores. Gente assim,  como eu,  está fadada ao extermínio social – porque hoje você tem  que  ter um lado, tem que ser de direita ou esquerda e ufanar a isto. Se fica em cima do muro, tal qual um passarinho, toma chumbo dos dois lados, saraivadas que sempre me atingiram e que até agora me deixaram incólume, graças a Deus. Mas, confesso, estou esgotado de apanhar e ainda ser fiscalizado porque apanho.

Portanto,  vamos parar por aqui. Que seja, na melhor das hipóteses, um “até breve”. Afinal de contas, amanhã há de ser outro dia – para lembrarmos do Chico Buarque compositor, o bom, o excelente, artista Chico Buarque. Me dói demais abandonar, ainda que temporariamente, ao meu público tão fiel que vem aprendendo, discutindo em alto nível, criticando e, sobretudo, pensando política e Direito, graças ao Entretanto. Me dói sobremodo, também, porque foi graças ao Entretanto que conheci a mulher e parceira de agora e sempre e para o resto da minha vida, Michelle. Mas o Entretanto não sai de cena como em uma fuga – este é apenas um recuo estratégico. Procurei informar, quando a informação é perigosa, e estou pagando o preço caríssimo disso. Mas também fiz como Paulo de Tarso: travei o bom combate e não perdi a fé.

Vamos perseverar com fé e Deus no coração, pessoal. Ele sempre olhará por nós. E viva a liberdade, ainda que tardia.

O Dito pelo não dito.
Não há democracia que possa ser defendida sem democracia.” (Renato Zupo, jurista e escritor).

Esta coluna é dedicada à minha primeira revisora, fã e parceira para toda a vida, Michelle Louise Zupo. Vamos travar sempre o bom combate sem perder a fé, meu amor.

RENATO ZUPO: Magistrado, Juiz de Direito na Comarca de Araxá, Escritor, Professor Universitário, Palestrante.