JUSTI

O risco de desoxigenarmos um paciente em estado de agonia

Por: Redação | Categoria: Arquivo | 31-12-2016 00:00 | 1540
Engenheiro Civil, Especialista em Gest
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Vou usar este texto para propor uma reflexão a respeito de um assunto que assistimos diuturnamente, neste ano de 2016: a caça às bruxas na classe política brasileira.



Com certa dose de tristeza, mas ao mesmo tempo de esperança, assistimos a mídia divulgar o andamento das investigações e as condenações oriundas dos sucessivos escândalos que ocorreram por traz das cortinas do poder, envolvendo bilhões em propinas pagas por grandes empresas, para terem acesso a contratos e, com isso, alimentarem o falido sistema político e eleitoral brasileiro.



Vivemos em um país democrático, não obstante o caráter sempre incompleto, sempre em permanente evolução, das formas de representação e participação democrática. Mesmo sabendo não existir democracia perfeita, penso ser ela a melhor forma que a humanidade concebeu de propiciar ao indivíduo o direito de participar, em condições equitativas, da condução de assuntos públicos e políticos. Na democracia representativa, o povo elege seus legisladores e governantes, e estes têm por seu turno o compromisso e a obrigação de legislar e governar em favor dos interesses gerais do povo, observando os princípios e garantias do estado democrático de direito.



Além das tarefas de legislar e governar, inseparáveis à vida política na democracia, é preciso juntar a essa tríade a administração da justiça, função confiada ao Poder Judiciário e aos demais órgãos e funções essenciais à justiça (o Ministério Público, a Defensoria Pública e a Advocacia), de cuja atuação efetiva depende o cumprimento, pelos demais poderes, das normas constitucionais e infraconstitucionais, assim como a proteção dos cidadãos contra quaisquer violações ou abusos perpetrados tanto por agentes públicos quanto privados.



Assim está formada a tríade dos poderes de nossa república federativa. Esta, como o revela seu próprio qualificativo, estrutura-se em três níveis: o governo central, também conhecido como União; o intermediário, constituído pelos 26 Estados e o Distrito Federal; e o local, que contempla mais de cinco mil Municípios, cada qual com o “status” constitucional de unidade da federação.



É justamente sobre esta esfera local, o Município, e sobre a situação do governo local em nossa estrutura federativa, que desejo propor a reflexão evocada no título deliberadamente provocativo deste artigo.



Os brasileiros comuns, que vivem nos municípios espalhados por esse imenso país e que necessitam de serviços básicos como saúde, educação, mobilidade urbana, cultura, lazer e tantas outras prestações que o poder público precisa disponibilizar, reclamam, com toda razão, quando não os têm à disposição ou quando são prestados de forma incipiente. As queixas da população são procedentes e justas, porque é essa população que trabalha para gerar a riqueza do país e que precisa do retorno de seus impostos em forma desses serviços, os quais muitas vezes não chegam ou, quando chegam, não o fazem de forma equitativa, a quem deles mais precisa.



Entretanto, o que os cidadãos não sabem é que os gestores de seus municípios, que são os prefeitos e seus auxiliares, ficam de pés e mãos atados quando sabem o que precisam realizar, mas os recursos disponíveis simplesmente não são suficientes. Várias razões poderiam ser apontadas para isso. Entre as razões conjunturais, podem figurar o declínio da arrecadação, comum em períodos de recessão ou decorrentes do declínio de certas atividades econômicas no município; o aumento de necessidades, em razão de migrações, da maior urbanização e do crescimento e envelhecimento da população; a definição inadequada de prioridades ou a busca de sua realização por meio de mecanismos de gestão inadequados, que causem desperdícios; sem contar a própria apropriação ilícita de bens e recursos públicos por gestores e políticos inescrupulosos, envolvidos em atividades criminosas. Além dos efeitos que um ou mais desses fatores podem causar sobre a capacidade fiscal do município, sobressai, por suas consequências sistêmicas, uma razão estrutural: a existência de um modelo de relação entre os níveis federativos extremamente injusto, ultrapassado, e que dificulta o acesso dos cidadãos, na esfera local, aos benefícios a que têm direito.



Essa relação, descrita no tão badalado “pacto federativo”, é a forma pela qual são divididas as competências, responsabilidades e os recursos orçamentários necessários ao seu cumprimento entre o governo federal (a União), os governos estaduais e municipais. A esmagadora maioria dessas verbas (cerca de 70%), fica com a União; uma outra parte menor fica com os Estados; e para os Municípios resta uma pequena parcela desses recursos.



O resultado disso é que os municípios têm, relativamente às tarefas que lhe são confiadas, pouco dinheiro para fazer a maior parte das ações legitimamente reclamadas por seus cidadãos. Ao longo dos anos, principalmente após a promulgação da Constituição Federal em 1988, os legisladores federais (deputados e senadores), sob a orientação de sucessivos governos federais, foram concentrando obrigações nos municípios, mas deixaram de distribuir as verbas para que esses benefícios sejam executados. A educação básica, por exemplo, foi toda municipalizada, ou sua gestão atribuída aos municípios. Mas as verbas destinadas a esse fim foram minimamente repartidas.



A saúde é outro exemplo disso. As prefeituras são obrigadas a suprir sua população com postos de saúde e a executar ações básicas, como a saúde da família, além da saúde bucal, da vacinação e até a provisão de medicamentos. Mas a redistribuição da verba destinada à saúde não acompanhou a mesma evolução das obrigações que os Municípios receberam. Soma-se a isso o fato de que quando um dos entes da federação não cumpre bem o seu papel, a cobrança recai sobre a administração local, haja vista ser ela a única possível de ser acessada diretamente pela população. Prefeitos, vereadores e secretários municipais moram nos municípios, frequentam os mesmos ambientes que os munícipes, interagem diretamente com a população, por isso naturalmente se tornam os legítimos representantes de todas as ações de governo perante a população.



É este o cenário que encontramos quando nos dispusemos a participar da administração pública local e que os futuros administradores certamente vão encontrar.



Mas o que leva uma pessoa, ou um grupo, a querer abraçar tamanho desafio, em troca de uma remuneração muitas vezes aquém da realidade para funções semelhantes na iniciativa privada?



Minha resposta para isso é uma ou um misto das alternativas que vou elencar a seguir: (I) vaidade, acompanhada de ignorância da realidade; (II) usurpação, para a busca de enriquecimento ilícito; (III) ou idealismo, como um chamamento íntimo experimentado por todos os que, movidos por um ideal de vida em comum e críticos ao que impeça sua realização, não se furtam a dar sua cota de contribuição e a serem coparticipes das mudanças necessárias.



Para dar vazão a esse chamamento íntimo e exercitar esse idealismo, o caminho já é árduo desde o início. O idealista tem que passar, antes de mais nada, pelo crivo do voto. Tem que enfrentar as mazelas de uma eleição, cujo modelo, embora venha evoluindo com o tempo, no sentido de coibir abusos, reduzir custos e ampliar os espaços de participação política, certamente ainda está longe do ideal.



Se conseguir passar pelo necessário crivo do processo eleitoral, um agente público idealista assumirá funções de extrema dificuldade, cujo desafio e angústia serão tão maiores quanto maior for a consciência da responsabilidade que lhe foi confiada, das necessidades da população que é assistida por sua administração, e dos recursos, sempre insuficientes, necessários para colocar em prática as ações que almeja — sendo este o problema, a que já me referi, do pacto federativo.



Não bastasse isso, qualquer agente público inspirado por esse idealismo terá também de se haver com o desconforto gerado pelas implicações que o exercício de seu mandato  causarão sobre a vida de todas as pessoas que diretamente o rodeiam, como esposa, filhos, pai, mãe, irmãos, todos de uma certa forma estigmatizados e sujeitos a críticas e a sanções do público em razão do mero parentesco ou da proximidade com aquele agente (“aquela é a mulher do fulano”; “aquele é o filho do sicrano”, “beltrano, que é parente do fulano, está ficando rico”;  “todo político é ladrão”, e por aí vão os dizeres comumente entre ouvidos de pessoas que, embora tenham todo o direito de esperar, de seus governantes, a boa gestão, em conformidade com a lei, do interesse público, erram, seja ao esperar desses gestores o que estes estão impedidos de fazer, seja ao fazer de todos esses gestores uma massa indistinta, cínica e amoral, que desvirtua e se locupleta do mandato que lhes foi confiado.



Se for descrever todas dificuldades e desconfortos experimentados por agentes públicos que busquem honrar essa função, o texto se alongaria demais, e não é este meu objetivo. Posso assegurar a todos, porém, não ser isto vida fácil.



Agora, o pior de tudo, a culminar o rosário de desafios a que um agente público idealista pode se expor, para além daqueles ligados ao estrito exercício de sua função, é a insegurança jurídica que passa a fazer parte de sua vida, assim como a de sua família. Gente que nunca visitou delegacia e fórum passa a ter que responder por alegações muitas vezes fabricadas por adversários políticos que, por segundos interesses, revanchismo, inveja ou simplesmente por não saberem fazer uso da boa política, passam a atirar para todo o lado denúncias vazias e descabidas, cujo único objetivo é dificultar o trabalho e/ou desconstruir o legado de um agente público idealista. Sem por isso jamais pôr em dúvida o papel fundamental exercido pelo Poder Judiciário e pelos demais órgãos e funções essenciais à justiça, seja para zelar pela boa condução do interesse público, seja a proteção de todo cidadão contra quaisquer violações de seus direitos, não posso deixar de indagar se, para um político mal-intencionado e vingativo, lançar mão de denúncias abusivas e infundadas não seria uma ótima arma. Por que digo isso? Porque o ônus da prova, neste caso, recai sobre o acusado. É ele quem tem que provar, às suas expensas, que as alegações não procedem, que “focinho de porco não é tomada”, o que, a depender do requinte das fabricações e maquinações contra si são dirigidas, reclama trabalho e recursos não desprezíveis.



Lidar com essa avalanche de denúncias passa a fazer parte da vida do agente público idealista, desde a época em que exerceu o cargo, até o resto dos seus dias. Quem vai ser o fiel da balança e resgatar a verdade nesta situação?



Pergunta retórica, por certo, à qual responderia o idealista: o Poder Judiciário.



Ledo engano, infelizmente os membros do Poder Judiciário, sem prejuízo dos elevados ideais que também os movam, também estão sujeitos a acertos e erros, a vaidades e interesses, a vieses e achismos, bem diferente do que o ingênuo idealista poderia imaginar quando está do lado de fora da situação.



Além do mais, em decisões do Poder Judiciário, o mundo em que o Município está inserido pode, por vezes, parecer um fantástico e maravilhoso mundo dos sonhos, como se a estrutura herdada por um agente público idealista fosse perfeita e estivesse pronta para conviver sem nenhuma falha, em linha com todo o mais necessário e detalhado regramento que envolva a Administração Pública.



No mundo real, aquele em que vivem funcionários e agentes públicos, estes cometem erros e omissões, inobservâncias não intencionais de procedimentos meramente burocráticos. Sem jamais questionar o dever de todo agente público pautar suas ações à luz do princípio da estrita legalidade, não posso deixar de defender que se observe, em conformidade com doutrina jurídica amparada por vasta jurisprudência, se teria ou não havido dolo na conduta do agente. Isto porque, sem a figura do dolo, é virtualmente impossível a caracterização de improbidade administrativa, porque o improbo é aquele que teve a vontade, a intenção de causar lesão ou prejuízo ao erário público.



Diferentemente disto, certas decisões judiciais, principalmente em primeira instância, parecem descoladas das realidades locais, situação paradoxal, porquanto os profissionais do Direito são também participantes da vida do município em que residem, compreendem suas necessidades e desafios e tem condições de avaliar a vida pregressa, a conduta social, a integridade pessoal e a probidade e responsabilidade de um agente público. Não poderia, e nem é minha intenção, questionar a enorme importância dos agentes e órgãos encarregados da administração da justiça, para a realização dos objetivos que também informam a atuação de um agente público que se queira idealista. Não posso, no entanto, deixar de esperar que, no cumprimento de tão importante função, aqueles responsáveis pela administração da justiça saiam um pouco de sua redoma e, no exercício juridicamente informado da prudência, analisem os fatos do direito à luz da compreensão que podem e devem ter das motivações e decisões tomadas por agentes públicos, quando confrontados com os enormes e variados desafios trazidos pela vida real, tal como pulsa e se desenrola fora dos autos. 



Não posso abdicar da esperança de que profissionais do Direito sejam capazes de avaliar os ingredientes que separam uma pessoa honesta de uma desonesta; um agente público idealista de um agente público inescrupuloso. Resulta daí minha inconformidade quando, ao contrário disso aplicam-se sentenças duras, multas impagáveis, como se o idealista fosse um criminoso, como se tivesse extraído algum proveito pessoal ou político da situação, e como se não existissem outros meios, à disposição do judiciário e dos demais órgãos e funções essenciais à justiça, para corrigir, de modo mais rápido e proveitoso para o município e para os cidadãos, situações que mereçam alguma crítica ou reparo.



Pois é justamente aqui onde mora outro perigo: num momento em que o paciente agonizante — o município — precisa de oxigênio, quem seriam os novos políticos, idealistas, bem formados e com capacidade de virar o jogo em favor do interesse de todos, que se disporiam a tirar os municípios da agonia em que vivem? Quem, não bastassem todos os desafios próprios ao exercício da gestão pública, ainda se disporia a fazer face à enxurrada de alegações fabricadas por rivais inescrupulosos ou a ações que, ainda que movidas por um bom propósito, parecem desconhecer os desafios próprios à administração do município e os propósitos que movem seus agentes? Como pode um agente público idealista não se sentir ferido de morte em seus propósitos, quando uma decisão judicial o trata como “farinha do mesmo saco”, deixando o caminho livre para que políticos vaidosos ou desonestos se lancem a ocupar funções públicas?



Quem, em sã consciência, vai querer enfrentar essa barra?



Resta ao idealista o travesseiro, onde ele certamente depositará sua cabeça tranquila da sensação do dever cumprido, e a consciência de que, apesar de todas as dificuldades, seu trabalho ajudou a mudar para melhor a realidade da comunidade em que vive.



Para além disso, resta-lhe também um bocado de trabalho dispendioso, junto a outras instâncias do Poder Judiciário, frente as quais tentará provar sua boa-fé.



Será que vale mesmo a pena participar?



 



Pedro Henrique Zanin Junior; Engenheiro Civil, Especialista em Gestão Empresarial e Administração Pública; Secretário Municipal de Planejamento e Gestão do Município de São Sebastião do Paraíso de 2005 a 2012.