Vai a leilão, nas noites de 19, 20, 21 e 22 deste mês, o Espólio da Família Lemos de Moraes. Consiste no magnífico recheio do apartamento do Edifício Golden Gate, onde Lourdes e Wilson eram vizinhos da prima dele, Sarah (Lemos) e de Juscelino Kubitschek.
A exposição será a partir do dia 20, das 15 às 20 horas, naquele prédio histórico da Avenida Atlântica, que reuniu a fina flor da República dos anos 40 aos 60, inclusive a filha de Assis Chateaubriand, Teresa Alkmin. Hoje, pontifica na cobertura o cirurgião plástico Carlos Fernando Gomes de Almeida, frequentemente visitado por Valentino, quando o grande nome da moda italiana vem passar férias no Rio… ou vem passar pelo seu bisturi. O organizador do leilão é o Carlos Eduardo de Castro Leal.
Quando, há dois anos, morreu minha comadre Lourdes Lemos de Moraes, viúva de meu compadre Wilson Lemos de Moraes, brilhante empresário que erigiu um império do gás (Supergasbrás), do gado em imensas extensões de terra, de caminhões e máquinas pesadas, chegando a ser classificado dos maiores do país, escrevi o obituário que vocês lerão abaixo (link). Contudo, omiti no texto um aspecto de Lourdes muito particular, que apenas os frequentadores de suas múltiplas casas, no Rio de Janeiro e nas diversas fazendas, conheciam: o extremo refinamento de suas residências, o alto nível de sua qualidade de vida.
Aquela mulher quase ingênua, que divertia os amigos com suas tiradas “do interior”, sabia ser sofisticada como poucas donas de casa que conheço e conheci.
Tudo que Lourdes possuía em casa era bom, das dobradiças das portas às maçanetas. O piso de mármore de seu apartamento na Atlântica é um grande mosaico. As peças chinesas, únicas, preciosas. As peças brasileiras são de museu.
Para guiá-la nessas aquisições, Lourdes teve a melhor das mestras, a decana da decoração de São Paulo, Celina Duarte Martinho, 98 anos, decoradora de Campinas, talento excepcional. Celina decorou dezenas, e quando digo dezenas, são dezenas mesmo, de casas para Lourdes. As dela, as de suas múltiplas fazendas – decorações e redecorações – as de seus filhos, suas noras, seus netos, e pela vida inteira.
Grande estudiosa de estilos e épocas, Celina também tem o dom de criar peças e mobiliário, reciclando antiguidades. Assim – exemplo meu – uma linda mesa de centro pode ser uma coleção de caixas de engraxate do início do século passado, envidraçadas, e sobre elas peças nobres de prata.
Entre as N residências de Lourdes e Wilson decoradas por Celina jamais cheguei a conhecer a da Amazônia. Tinha a forma de um pássaro, projeto de Zanine, e estava pousada em pleno Brasil profundo, numa fazenda que começava lá no Pantanal e ia se estendendo país afora. Ou adentro. Lourdes cansou-se de me convidar, mas sempre pintava o convite com tintas de Indiana Jones, contando – os olhinhos azuis piscando maliciosos – que naquela região caía um aviãozinho por dia do ano, 365. E por fim perguntava se eu tinha medo de jacarés, já que à noite eles rondavam a casa e mergulhavam na piscina. Eu respondia: “É convite pra eu ir ou é pra sair correndo?”. E nunca tomei coragem. Volta e meia ela insistia. Mas não deixava de me provocar. Ah, minha comadre!
Fui diversas vezes à fazenda de Campinas com Lourdes, e me diverti embarcando em sua pick-up, junto com Celina, e fazendo o “garimpo” por fazendas antigas da região, onde a decoradora encontrara coisas extraordinárias que poderiam servir às decorações de Lourdes. Extraordinárias e muito antigas. Acredito que numa dessas expedições elas tenham encontrado esses magníficos chicotes de tropeiros do leilão, peças tão raras, com cabos de prata.
Na casa da fazenda, meu olhar se perdia atraído pela beleza dos armários, as mesas cheirando à melhor antiguidade, as louças, os cristais, as toalhas, roupas de cama, monogramas, cada detalhe, a educação e a gentileza dos empregados, a governanta, que despachava todas as manhãs com Lourdes em seu quarto, e assim ela tomava rédeas de tudo – tudo mesmo – que acontecia dentro da casa e fora dela… “rádio peão”.
Depois, de maiô e com um chapelão imenso, íamos as duas pra piscina comer tangerina pokan, porque era sempre época, e vinha o empregado do pomar com cestos e cestos – éramos insaciáveis. Êta vidão.
Na volta, Lourdes embarcava no aeroporto em Campinas, voo regular, cheia de cestos com pokan, ovos, queijos, produtos da fazenda, toalhas de banho com dois metros, que só lá em Campinas tinha, pra abastecer as casas da filharada no Rio. E isso era uma rotina de suas vindas e idas. Era uma tropeira dos tempos modernos.
Quem imaginaria que aquela senhora de chapeuzinho de palha, cheia de cestos e iso-pores, era uma das mais refinadas deste país, com requintes, em sua intimidade, que só uma grande dama de longo curso sabe ter.
A presença da decoradora Celina Duarte Martinho na organização dos espaços domésticos dos Lemos de Moraes lembra a do Rudy Siqueira casa-fazendola da Gávea Pequena, com os Fontes. E assim foi sendo escrita a história das grandes famílias brasileiras, jamais dispensando a assessoria do bom gosto e do melhor talento.
(11 de setembro de 2017 http://www.hildegardangel.com.br)