MEMÓRIA AQUINENSE

Na "precata", do Norte de Minas para São Tomás

Jornal de aniversário julho de 2000
Por: Selma Braia | Categoria: Cidades | 16-01-2020 17:10 | 1203
Salustiano José Tomaz (Sr Salú)
Salustiano José Tomaz (Sr Salú) Foto: Reprodução

Foi o professor Marcos do Carmo, nosso companheiro de labutas, sabendo que estávamos alinhavando um caderno especial sobre o aniversário de São Tomás, e queríamos ouvir um depoimento histórico, de alguém que tivesse vivenciado fatos interessantes, quem nos alertou: "O "sô" Salú sabe muita coisa". Com a boa vontade que lhe é costumeira, professor Marcos com um gravador nas mãos proseou durante um bom tempo com "sô" Salú. Na serenidade e lucidez de seus 95 anos, ele contou de tudo um pouco. Diria muito mais, do que está armazenado em sua memória fotográfica. Apenas, por uma questão de espaço no jornal, nem sempre do tamanho que necessitamos, "passamos a régua", selecionando alguns "causos" pitorescos. No entanto já ficamos combinados: dentro em breve, com muito gosto anotar novos relatos. Detalhe digno de registro: para a fotografia aqui estampada, fomos encontrar "sô" Salú apanhando café, o que sem dúvida levando-se em conta sua idade, é mais um exemplo de vida.

"Minha ideia era ir para São Paulo. Cheguei aqui, achei bom e fiquei", explica o senhor Salustiano José Tomás, natural de Riacho dos Machados, município mineiro "uma região seca e de pouco plantio" confrontando com a Bahia. "Vim a pé, "na precata", andando cada dia um tanto até que cheguei a São Tomás, casei, combino com todo mundo graças a Deus", enfatiza.

Das lembranças de sua chegada, recorda que aqui era uma vila, um comercinho pequeno, "com aquela rua mestra, calçada com pedras até chegar lá em baixo", com algumas "casas, salteadas, aqui e acolá, umas vendas, e umas lojinhas". Mas o grande movimento mesmo era nas fazendas de café, vendido a três mil réis a arroba. "Aos sábados, formava-se um baile nas colônias. Não precisava vir gente de fora, bastava os da fazenda para movimentar", conta. O café era transportado em carroções (puxados por oito e até dez burros) e carros de boi, a princípio para Mococa, e Casa Branca, depois para Paraíso. "Era um sacrifício, mas ao mesmo tempo era bom, porque o sujeito gostava daquilo", garante Salú. Levava-se o café e, na volta, sal e outros produtos, via de regra adquiridos no armazém da "Dona Maria Italiana", que na opinião de "sô" Salú"  era "uma chefa de Paraíso", uma comerciante muito forte.

Em suas reminiscências, recorda-se de Firmino Custódio, que para cumprir sua fé religiosa, ia a pé de São Tomás até Franca, para assistir missas. Lembra-se das dificuldades enfrentadas, por exemplo, para tratamento de saúde e transporte. "A condução era difícil" e para vocês ter uma idéia, uma vez o José Ribeiro foi dar sal para o gado, e uma vaca lhe rachou a perna ao jogar o cocho sobre ela. "Ele garrou a mancar" e precisei levá-lo para Paraíso. As únicas conduções que havia era aquela "vaca amarela do Artur"  um carrinho do Mário Alves que eles tratavam de "pé-de-bode" e "uma jardineira velha que navegava com muita "dificulidade". Hoje a coisa evoluiu, observa.

Quanto à assombrações, o "sô" Salú, disse nunca ter visto, mas acaba relatando que um dia saiu de casa para ir até a "fábrica velha do Zé Chaves, pegar uma lenha para tirar da roça". Em seguida bateu prá São Tomás, e de lá para a fazendas dos Montans, onde morava seu sogro. Entreteu na conversa e acabou voltando tarde. "Era umas onze horas da noite, vim vindo, vim vindo, amontado numa mula que eu estava amansando. Ela já estava até mais ou menos. Antes de chegar em casa, perto de uma porteira, um "trem" pegou no freio, na boca da mula. Só vi a hora que ela deu um "sopro" e fincou comigo, mas eu não via assombração", afirma. Depois de muita peleja o destemido peão conseguiu saltar do arreio, indo a mula parar numa quiçaça. Ao entrar em casa,  "Sô" Salú ouviu a observação de sua esposa: "Larga a mão de estar andando nestas horas, que você ainda encrava"...

Ao falar sobre a política daquela época, o tom da voz do velho e lúcido mineiro mudou de tom. Falou quase sussurrando: "Era violenta e perigosa"... Ainda falando sobre política, discorda do atual sistema, onde "os homens conversam muita besteira, coisa perdida, que vem dos grandes. No tempo de D. Pedro II, as coisas eram outras", argumenta "sô" Salú, que numa política mais recente menciona Juscelino e Tancredo. Com sua sabedoria, ressalta, no entanto, "não entender de política", mas acha que o atual sistema "atrapalhou o Brasil".

Arrematando, lembrou-se da qualidade da cerveja e guaraná que eram fabricados em São Tomás, naquela época, pelo senhor Dante Giubilei. "Aquilo sim era cerveja, não era essas águas chocas de hoje". Assim é o senhor Salustiano uma pessoa sábia nos mais de noventa anos de uma vida simples mas feliz. Estimado pelos aquinenses e orgulhoso sempre diz, não ter nenhum inimigo.