ENTRETANTO

Sobre a legalização da maconha

Por: Renato Zupo | Categoria: Justiça | 14-08-2023 05:59 | 773
 Renato Zupo
Renato Zupo Foto: Arquivo

O STF deve decidir se uma determinada lei é constitucional ou inconstitucional. Para isso deve ser provocado e não pode agir de ofício (princípio da inércia). Esta declaração poderá ser incidental ou concentrada, conforme se requeira àquele magno tribunal a declaração de constitucionalidade ou inconstitucionalidade dentro de uma ação inespecífica ou através de uma ação direta declaratória (ADC ou ADIN). O que o STF não pode, através de seus excelsos ministros, é remendar a lei, substituí-la ou criar uma “lex tertia”, que é uma colcha de retalhos e não é uma coisa nem outra. Aí legisla. Aí ofende a constituição federal. Aí vamos todos para o brejo.

O pior: quando se declara a “repercussão geral” no julgamento da matéria, mesmo a declaração incidental se torna vinculante. Ou seja, obriga a que todos os tribunais inferiores e juízes decidam da mesma forma a casos análogos. Este efeito vinculante é um instituto jurídico relativamente novo na plêiade de nosso sistema legal constitucional e foi importado do direito anglo saxônico para que aqui seja utilizado com prudência e parcimônia – “cum grano salis”, como se dizia antigamente no latim jurídico.

Definitivamente, não é assim que o STF e seus ministros vem agindo nos últimos anos. Não “este” STF, desde a morte de Teori Zavascki – acho que com isso todos, esquerdistas e direitistas, progressistas e conservadores, gordos e magros, concordamos. Parcimônia não pertence ao dicionário dos componentes da mais alta corte de justiça do país e não imagino Alex de Moraes parcimonioso, ou Barroso com papas na língua, escolhendo palavras imparciais para dizer um voto polêmico ou se pronunciar em palestra. Tampouco imagino Gilmar Mendes ou Facchin tomando cuidado com a repercussão política polêmica de suas decisões, ou o mesmo Facchin cuidando para deliberar de maneira neutra em uma decisão liminar sobre a invasão de favelas do Rio durante a pandemia.

Ao contrário, os ministros de nossa suprema corte de justiça usam e abusam da vinculação de suas decisões para ditar normas morais, políticas e, o mais grave, penais, neste Brasil sem esperança alguma, hoje, de normalidade institucional. O STF governa o desgoverno, essa é que é a verdade, a verdade é essa – como diz meu bom amigo Jam, de Araçuaí, no queridíssimo Vale do Jequitinhonha. Assim é que os magistrados supremos já criaram crimes (homofobia), autorizaram casamentos homoafetivos e determinaram investigações por crimes que não existem (fake news), além de punir política e criminalmente as pessoas por manifestação do pensamento em redes sociais. Também por causa deles, xingar políticos e gente pública em aeroportos virou crime contra as instituições democráticas – e não mais crime contra a honra.

Agora, o STF, incidentalmente, mas com repercussão geral, julga se portar maconha para uso próprio é ou não crime e aproveita para fazer o que ninguém pediu, agindo sem provocação portanto: irá criar parâmetros objetivos e quantificáveis para diferenciar traficantes de usuários. Aqui, a corte excelsa fere o princípio da inércia, algo que infelizmente vem sendo corriqueiro. Acolá, desfaz literalmente a lei e cria uma “lex tertia” que não foi parida pelo Congresso Nacional. Não só não foi urdida pelo Poder Legislativo como este, bem lá no mesmo art. 28 da atual Lei de Tóxicos que pelo Supremo se discute, justamente neste dispositivo a lei penal é clara em determinar os critérios para atribuir ao agente do crime a condição de usuário ou traficante: condição social, profissional, circunstâncias pessoais, patrimônio, dentre outros. Nunca a quantidade de drogas!

E por quê? Porque o critério de quantidade cria um salvo conduto para todo traficante do país. Se até sessenta gramas de maconha (sugestão de Alexandre de Moraes) não dá cana, basta ao meliante vender de sessenta em sessenta gramas, indo e vindo – o que é o óbvio ululante. Ah! Moraes também conduz seu voto e seu convencimento para um viés social, acrescentando o que ninguém perguntou: que pretos e pardos são mais presos por tráfico do que brancos de classe média. Outro raciocínio enviesado e não creio que Moraes tenha errado simplesmente, é muito inteligente para tanto. É que ele fala para o povão. Decide conforme os anseios populares, atente à voz das ruas, acode aos aplausos de parcela da opinião pública – é outro perigo. A opinião pública já crucificou Cristo, lembram-se?

E é claro que há mais negros e pardos presos por tráfico, como há mais negros e pardos presos por homicídio e roubo – simplesmente porque há mais pretos e pardos pobres, e a miséria, sabe-se, é um bolsão de criminalidade. Onde abunda o abandono estatal e a falta de emprego e escola, prolifera o crime. Não há mais condenações por tráficos de pretos e pardos por tráfico devido à cor de sua pele ou à sua condição social, mas sim porque sua condição social os torna mais vulneráveis ao crime organizado. Moraes quer mudar a lei de tóxicos sem a adesão do Poder Legislativo para aplacar movimentos sociais que enxergam racismo em todos os nichos da sociedade brasileira. Parece colocar a segurança pública e assim vamos para o buraco rapidinho.

O dito pelo não dito:
“Se eu acredito em Deus? Mas que valor poderia ter minha resposta, afirmativa ou não? O que importa é saber se Deus acredita em mim”. (Mário Quintana, poeta brasileiro).