Marilda Melles: uma vida que coube em tantas casas quanto corações
Entre a timidez e o poder, a trajetória de uma mulher que fez da delicadeza sua forma mais rara de força
Ela
fala com a serenidade de quem já entendeu o tempo. A voz doce, o olhar firme, o
gesto leve — e a memória exata, como se cada lembrança ainda estivesse guardada
no mesmo lugar. Marilda Petrus Melles é dessas mulheres que cabem em mais de
uma história: menina de sotaque emprestado, adolescente da fanfarra, miss
improvável, apresentadora espontânea nos comícios, mãe, avó, paraisense por
vocação. No meio de tudo isso, por alguns anos, prefeita. Mas o que a define,
no fim, é outra coisa: a capacidade quase teimosa de cuidar.
Nasceu
em São Sebastião do Paraíso, filha de Mário e Raylda Petrus, mas os primeiros
passos foram dados longe dali, no Paraná, para onde a família se mudou antes de
voltar à terra natal. “Eu falava diferente, com aquele sotaque paranaense, e as
crianças me olhavam como se eu fosse de outro mundo”, ri. O tempo tratou de
devolver-lhe o tom da terra — e o afeto das origens.
Em
casa, aprendeu cedo a compaixão. O pai tinha o costume de recolher bichos
doentes da rua: cachorro, gato, passarinho. “Ele trazia pra casa e eu ficava lá
cuidando junto. Papai era assim: não deixava ninguém sofrer — nem bicho”. Esse
gesto simples fez escola. A menina entendeu que cuidar é verbo de todo dia, e
não discurso de ocasião.
Vieram
também os livros. O primeiro, Alice no País das Maravilhas — grosso, sem
figuras —, foi lido como quem abre uma janela. Estudava de manhã no Colégio
Paula Frassinetti, fazia datilografia à tarde, contabilidade à noite. Alta e
tímida, encontrou na fanfarra um jeito de caber no mundo: bandeira, tambor,
disciplina. “A escola me abriu o mundo”.
Em
1970, foi eleita a primeira Miss Lions Club do mundo — um título improvável
para uma adolescente avessa a holofotes, mas que a apresentou a uma ideia que
nunca mais largou: servir. Quatro anos depois, em 1974, venceu o Miss São
Sebastião do Paraíso. Na sequência, veio a TV: representou a cidade no quadro
“Cidade contra Cidade”, de Silvio Santos, na antiga TV Tupi — e venceu. Foi um
daqueles programas longos, ao vivo, que começavam à noite e varavam a
madrugada. Na prova da valsa, Marilda dançou com o pai. Na bancada dos jurados,
um jovem Tony Ramos fez graça e arrancou risos do auditório, numa brincadeira
com a falta de habilidade do pai no salão.
Depois
de Ribeirão Preto, veio São Paulo: Comunicação Social. Sonhou alto e variado —
música, cenografia, farmácia — até admitir que seu ofício era gente, história,
ideia. Morava perto de estúdios de TV, frequentava bastidores, aprendia
observando. “Sempre gostei de comunicação, mas a vida me puxou por outros
caminhos”. E puxou mesmo.
Entre o amor e a fé
Alguns
anos depois, reencontrou Carlos Melles, amigo da infância, sete anos mais
velho, estudante de Agronomia. “Ele brincava que a primeira mulher vestida de
noiva que viu foi minha mãe. E depois casou comigo.” Casaram-se em 1976.
Ele
seguiu na política — deputado, ministro, secretário de estado. Ela, na
retaguarda — a vida da espera e da oração. “Ser esposa de político é esperar
com amor. Cuidar da casa, dos filhos, das ausências. É um amor que se constrói
na confiança e na fé”.
E
nunca deixou Paraíso. “Podia ter ido morar em Brasília, mas meu coração sempre
foi daqui. Gosto de andar na rua, de ir à missa, de conversar com as pessoas.
Aqui é o meu chão.” Mãe de três filhos — Cristiano, Caio e Maria Pia — e avó de
seis netos, fala da família como quem enumera bênçãos, não feitos: “É por eles
que eu rezo todos os dias”.
O chamado e a noite fria
A
política, para ela, era território dos outros. Até que, em 2000, os partidos de
oposição a convidaram para disputar a Prefeitura. A primeira resposta foi não.
“Eu dizia: não é meu lugar, não é pra mim”.
Poucos
dias depois, seria a convenção dos partidos coligados, no escritório de Carlos
Melles, para bater o martelo. Marilda tinha acabado de chegar dos Estados
Unidos, onde visitara o filho. Era uma noite fria. Foi apenas acompanhar,
agradecer – e recusar - o convite feito dias antes para encabeçar a chapa. No
meio da conversa, colocou a mão no bolso do casaco — e tocou uma medalhinha de
Nossa Senhora das Graças. “Na hora, senti que era um sinal. E parece que Nossa
Senhora me disse: ‘Marilda, eu escolhi ser Mãe de Cristo, e você foi escolhida
para cuidar dos filhos dos outros”. A dúvida ruiu. “Entendi que não era convite
político; era chamado espiritual” .E disse sim.
Sem
marqueteiro milagroso nem promessas de vitrine, desenhou a campanha no caderno:
visitas de casa em casa, reuniões no fim do dia com os candidatos a vereadores,
olho no olho. Então começaram os programas eleitorais na TV Sudoeste — e a
cidade descobriu o carisma da “moça da televisão”. Nos comícios, as crianças a
aplaudiam. “Eu me sentia a ‘Xuxa Velha’”, brinca, até hoje. “Se fosse pra
ganhar o coração delas, já valia tudo”.
Venceu
com folga e se tornou a primeira prefeita eleita de São Sebastião do Paraíso —
e, até agora, a única. E ela governou como quem cuida da própria casa. Chegava
cedo, saía tarde, ouviu mais do que falou, errou e acertou, e deixou marcas que
muita gente ainda aponta na rua — uma rua pavimentada, uma UBS perto, uma
associação rural com maquinário, um curso que virou emprego. Sem lista fria:
legado que se mede na vida real.
Retratos de uma mulher (e só então de uma
ex-prefeita)
A
história de Marilda não se sustenta em pedra inaugural. Se explica em retratos.
A menina alta da fanfarra, que encontrou no compasso dos tambores o primeiro
treino de disciplina; a leitora de Alice, que aprendeu a atravessar espelhos
sem perder a doçura; a miss relutante, que aceitou a faixa por respeito à
cidade, não por vaidade; a filha que dançou com o pai na TV ao vivo, e viu Tony
Ramos fazer graça da valsa, deixando a família inteira gargalhando na sala; a
esposa que transformou ausências em oração; a mãe que fez da casa um porto, a
avó que hoje lê histórias e ensina as orações do começo da vida; a paraisense
que nunca confundiu cargo com importância.
E
aí, sim, a prefeita. Sem trombeta, sem oba-oba, com um punhado de decisões que
arrumaram a cidade por dentro. Em vez de números, a régua humana: gente
qualificada, bairro asfaltado, posto de saúde mais perto, estrada rural
alargada, enxurrada contida, coleta de lixo com hora e respeito, parceria com
quem produz, atenção ao que é invisível. O que dá trabalho e não vira outdoor.
Claro,
teve barulho, crítica, puxada de tapete. Teve madrugada com processo aberto na
mesa, conta refeita à mão, rubrica por rubrica. Teve mês de aperto em que ela
doou o próprio salário. Teve “não” dito na cara quando a pedida atravessava a
linha. Teve uma comparação que repetia para o secretariado e que ajuda a
entender seu norte: “Prefeito é síndico do prédio: cuida do que é de todos, com
zelo e respeito”.
E
teve o que não aparece em ata: um projeto de gratidão à professora que a
alfabetizou — a Escola Municipal Professora Alice Naves. Marilda brigou pelo
terreno, cuidou da papelada, conversou com vereador por vereador, e viu a
aprovação sair por unanimidade. A inauguração veio alguns meses depois do fim
do mandato. “Gratidão não tem pressa.”
Depois do cargo, a pessoa
Em
2004, decidiu não buscar a reeleição. “Dei tudo o que eu tinha. Era hora de
cuidar da família — e de mim”. Continuou ao lado do marido na vida pública, mas
com os pés fincados em Paraíso: missa, amigos, mercado, rua. O papel mudou; a
vocação de servir, não.
Hoje,
a rotina é de casa cheia e coração manso. Cozinha, lê até tarde — “sempre
gostei da noite” —, reza o terço, acompanha os netos. O telefone ainda toca com
pedidos de sempre; ela ajuda como pode, sem alarde. Grandeza, na régua dela, não
se mede por faixa — se mede por legado.
E
o legado de Marilda é, antes de tudo, humano. A menina do sotaque paranaense
virou símbolo afetivo da cidade — não por ter sido prefeita, mas por ter sido
próxima. Quando alguém a aborda na rua para agradecer por uma casa, uma rua, um
posto, um curso, ela sorri do mesmo jeito antigo: discreta, grata, sem discurso
pronto.
Paraíso por dentro
Talvez
seja esse o segredo: olhar a cidade por dentro, como quem entra descalço em
casa alheia. O asfalto que não salta à vista, mas seca o barro da porta. A UBS
que evita a viagem, o remédio que chega, o agente comunitário que vira
conhecido. O curso que vira emprego, a associação rural que ensina a comprar
junto e vender melhor, a estrada que deixa o caminhão passar sem atolamento, a
coleta de lixo que respeita horário e calçada. A canalização que ninguém vê e
que segura a enxurrada para que a praça exista. O calendário de cursos e
pequenas feiras, os projetos culturais ocupando o prédio histórico, as quadras
abertas no contraturno, as salas cedidas à alfabetização de adultos. Gesto
atrás de gesto.
Isso
não faz manchete. Faz vida.
Uma cidade que cabe no peito
Há
quem goste de contar uma gestão por quilômetros de asfalto e milhões
empenhados. E tudo bem, segundo ela mesma. Mas, Marilda prefere lembrar de
gente. Da criança que a puxava no comício gritando seu nome. Do porteiro que
aprendeu a ler nas aulas da noite. Da agricultora que recebeu a chave da casa e
não acreditou que era verdade.
Do
idoso que agora consegue medir a pressão a três quarteirões de casa. Do
produtor que aprendeu a usar o trator novo e colheu sem perder para a chuva. Da
mãe que ganhou tempo com a rua pavimentada. Da praça que voltou a ser ponto de
encontro. Coisas pequenas, que são as maiores.
No
fim, a história volta ao começo. À menina da fanfarra. À leitora de Alice. À
miss contrariada que foi por respeito à cidade. À jovem da Comunicação que
queria contar histórias e conhecer o mundo. À esposa que transformou a espera
em oração. À mãe e avó que enche a mesa e a casa. À paraisense que nunca
precisou de capital para se sentir importante. E à medalha — aquela que saiu do
bolso na noite fria — lembrando que o “sim” mais verdadeiro não é o que a gente
grita no palanque, é o que a gente sustenta no dia a dia.
