Nascido lá pelas bandas da Fazenda Coqueiros, em São Tomás de Aquino, isto há mais de 84 anos, Guariguazil Alves da Silva ganhou nome pouco comum. Por conta de economia silábica passou a ser chamado Guari. Filho de uma descendente de portugueses e de um policial militar que nas horas vagas era fotógrafo, daqueles chamados lambe-lambe, cujas máquinas semelhantes a um caixote ficavam suspensas em tripés de madeira, e na hora de “tirar” o retrato cobriam a cabeça com um pano preto. O pai se foi bem cedo para o andar de cima, e Guari tem a cisma que em um hospital lhe deram “o chá da meia noite”.
Ele e os muitos irmãos foram bem criados pela mãe, que com o tempo trouxe a prole para São Sebastião do Paraíso. Moraram na avenida Delfim Moreira, quando ainda chamada de “Rua dos Carros”, alusão aos carros de boi que por lá passavam sobre o areão, rua que também era corredor para vacas tangidas e que não raras vezes disparavam, parecendo adivinhar que estavam rumo ao matadouro municipal. O areão servia também de improvisado campinho de futebol para a meninada.
O menino Guari vendeu panos de prato confeccionados pela mãe. Tinha freguesia certa em um quarteirão e meio da rua Tiradentes, bem na área central de Paraíso, anos 40, quando a coisa por ali era animação da noite pro dia. “Era lá o quebra-caixotes”, como diria um amigo meu. Nunca voltava para casa de mãos abanando. Vendeu também filhotes de passarinhos, se não me engano, tico-ticos que eram cuidadosamente pintados e passados como canarinhos. No primeiro banho na pequena vasilha que servia como bebedouro dentro de gaiolas, a tinta se desgarrava das penas.
Tempos depois, mãe e filhos foram para São Paulo. Moraram em um porão no Bosque da Saúde, queimando as panelas em improvisado fogãozinho, feito em lata de 18 litros onde serragem de madeira era socada. Não se acostumando com a cidade grande, ela tratou de voltar para Paraíso, mas desta vez sem a companhia dos filhos. Desgarrados, um virou bombeiro militar, e sua farda diferente era admirada quando, garboso, vinha visitar a mãe. Uma das filhas casou-se com um açougueiro italiano, a outra com um funcionário da CMTC e a exemplo de suas irmãs, teve filhos, de quem Guari se lembra apenas quando eram crianças.
Dos tempos em que morou no Fundo do Pito próximo a Igreja de Nossa Senhora do Rosário, em São Tomás de Aquino, Guari recorda-se de um trompetista dono de bar, vizinho de sua casa. Costumeiramente tocava à noite, melodias e improvisações com maestria, sons que ficaram em sua memória e ainda hoje provocam um brilho nas retinas de Guari quando conta desses seus primeiros contatos com música boa e bons músicos. Tempos depois, já maduro, teve a certeza que o trompetista aquinense se divertia, e bem, com clássicos brasileiros e internacionais com uma levada de jazz.
Em São Paulo engraxou sapatos, e o brilho no pano era puxado em ritmo de samba. Lavador de carros dormiu em automóveis. Conta o privilégio de ter conhecido e aprendido algumas letras com Monteiro Lobato, que conforme diz, era de simplicidade ímpar.
Sua vida como cozinheiro se iniciou com o convite feito pelo proprietário da Cantina Gigetto, na rua Nestor Pestana. “Eu lavava carros e um dia ele me perguntou se queria ir lavar pratos, o que aceitei de pronto. Tempos depois passei a trabalhar na chapa, depois fazendo massas, e daí em diante em outros setores da cozinha”, conta.
Guari sempre teve proximidade com músicos, compositores e artistas, entrosamento possivelmente por seu jeito mineiro de ser, além de ter trabalhado em restaurantes e casas noturnas onde havia contato com muitos deles, o que lhe rendeu algum trabalho extra em teatros, como porteiro e contra regra.
Ouviu palavrões vindos de Dercy Gonçalves, e acabou protagonizando uma cena hilariante no Teatro Cultura Artística, localizado próximo à Praça Rooselvet na área central de São Paulo. Era contra regra, pau para toda obra cuidando de cenários, figurinos, movimentação de móveis, e numa certa ocasião, por ter faltado um figurante, foi “convocado” para cobrir sua falta, em apenas uma cena.
Estava em cartaz uma peça sobre a Paixão e Morte de Cristo, e caberia ao Guari entrar com pequena bacia de água e se postar, quando Pôncio Pilatos no histórico gesto fosse “lavar as mãos” no julgamento de Jesus. Na hora exata, como Guari não havia ainda adentrado ao palco, o ator improvisou como pôde, se virou. Somente depois de uns dez minutos da fatídica cena, sem nenhuma pressa, Guarizinho adentra com a bacia. O que era sacro virou cômico, e não escapou a um expectador, que largou uma risada daquelas contagiantes que vão se alastrando. Guari justificou ter sido comunicado “em cima da hora”, e ter se atrapalhado na colocação da túnica e principalmente da sandália estilo romano, cujas tiras são amarradas perna acima em forma de xis, isto sem contar que já “havia molhado a palavra”.
Quando o proprietário do Gigetto abriu um restaurante no Rio de Janeiro, Guari o acompanhou. Encantou-se com a cidade e por lá ficou bom tempo. Arriscou outros trabalhos. Morou em favelas, inclusive na Rocinha. Ajudou baiana vender acarajé, trabalhou e restaurantes e também cozinhou em casarões para famílias que residiam cidades serranas. Ganhou prêmio da Revista Manchete como cozinheiro destaque na elaboração de apetitoso prato. Foi cozinheiro na Gávea, para o Flamengo, mas foi na noite carioca que conheceu grandes músicos e compositores como João Donato, Billy Branco, a cantora Maysa, João Gilberto dentre outros.
Em dezembro de 1988 trabalhava na empresa encarregada de preparar o jantar de reveillon no barco Bateau Mouche, e por seu coração generoso acabou livrando-se da morte. Um colega cozinheiro pediu e embarcou em seu lugar depois de ter argumentado a necessidade de ganhar um pouco mais. O Bateau afundou-se na Baía de Guanabara deixando mais de 150 vítimas.
Guari, canela vermelha que teve umbigo enterrado na Fazenda Coqueiros conheceu outros estados brasileiros, e por pouco foi para os Estados Unidos com Tim Maia, o que também foi “sorte grande”, pois o polêmico artista se envolveu em enrascadas. Dias antes Guari havia perdido os documentos e não voou para terras de Tio Sam.
O irmão bombeiro morreu faz tempo. Das irmãs não tem notícia de longa data, eram mais velhas que ele, e perderam o contato. Certamente sobrevivem seus sobrinhos. Há também uma história envolvendo uma cozinheira japonesa que teve uma filha e acabou voltando com os pais para Tóquio. Bem, mas é capítulo a parte, e fica para outra vez.
Quando perguntei ao meu amigo Guari como foi seu retorno do Rio de Janeiro, que não esquece, para São Sebastião do Paraíso, ele me disse ter acertado uma milhar no jogo do bicho e isso lhe garantiu naquela época, e já se vão alguns anos, pequena bolada para ficar sossegado por uns tempos. Com a mula na sombra ficou o quanto pôde, e quando a circunstância assim o exigiu, voltou à lida como cozinheiro em restaurantes em Paraíso e região. Hoje em dia, nos brinda com suas receitas e principalmente com sua amizade. Queima panelas somente para o gasto, e sem hora certa.