Foi há muitos anos, mas, a cena ainda está bem viva em minha memória visual, como se fosse ontem. A cidade era São Miguel do Araguaia e estávamos lá a passeio, nas férias de julho.
Certo dia fui convidado a visitar uma senhora que fazia parte do círculo de amizades de nossos anfitriões.
- A filha dela tem problemas físicos - alguém me alertou.
Então, eu estava preparado para encontrar alguém numa cadeira de rodas, ou mesmo numa cama, mas, definitivamente, não estava pronto para ver o que vi: no centro da sala havia uma saia rodada formando um círculo e no meio estava a cabeça da jovem. Seu tronco e seu abdome eram tão pequenos que dava a impressão de que ela só tinha pescoço e cabeça.
Engoli em seco e me sentei, após cumprimentar mãe e filha. A garota conversou conosco de maneira normal, o que ajudou muitíssimo a dissipar nossa preocupação e, por que não dizer, o choque.
Mas, a cena ficou marcada em minha mente, como se fosse uma interrogação para o Alto?
- Por quê?
Tem um filme novo fazendo muito sucesso, especialmente com a moçada e com as pessoas mais românticas: "Como eu era antes de você." Nesse caso quem tem problemas físicos é um moço muito rico e charmoso, que ficou tetraplégico após ser atropelado por uma motocicleta.
Quem vê filmes românticos até já adivinhou: uma moça vai cuidar dele e eles se apaixonam. Ela tenta, de uma maneira muito tosca, despertá-lo para a vida, levando-o a corridas de cavalos e jantares em restaurantes, sem muito sucesso.
O que ela não sabia era que ele já tinha um plano pronto e até com data marcada: viajar para a Suíça, internar-se numa clínica chique chamada "Dignitas" e submeter-se a uma eutanásia. Morte suave.
Quando fica sabendo, ela tenta mudar sua cabeça, mas, não de forma muito convincente. E ele diz a ela que não quer prendê-la a um corpo paralisado. Diz-lhe que ela tem a vida toda pela frente, para passear, correr, nadar, dançar, junto com alguém que possa acompanhá-la, alguém sem problemas, "como eu era antes de você".
E ele morre, deixando para ela uma boa quantia de dinheiro, para que ela pudesse recomeçar a vida...
E todo mundo gosta, acha que foi um final perfeito!
O que somos, afinal de contas, nesse mundo? Um par de pernas e de braços, um corpo e uma cabeça? E para que vivemos, para bailar, para correr, para nadar, para amar? Não! Somos espíritos imortais com o Universo inteiro pela frente. O ser terrestre está apenas começando a engatinhar diante dos bilhões de mundos que se estendem à sua frente. Basta olhar à noite para o céu e tentar contar as estrelas, ou mundos.
Dessa forma, a moça de Goiás estava certa em conversar com a gente de forma tranquila. Porque ela, assim como o moço tetraplégico, tinha sua missão. Os dois, bem como todos nós, estavam aqui para crescer em sabedoria e Amor. E, se bem pensarmos, que é uma vida de 80, 90 anos, diante do infinito, diante da eternidade? Menos que um décimo de segundo!
O rio do tempo me ensinou que a Providência muitas vezes entorta os corpos para endireitar os espíritos.