ENTRETANTO

Entretanto

Por: Renato Zupo | Categoria: Justiça | 13-09-2018 17:28 | 1613
Foto: Reprodução

Tragédia
Quando o Museu Nacional do Rio de Janeiro queima, toda a cultura brasileira também queima. Construído por Dom João VI no Brasil Império, monumento datado de duzentos anos de existência, abrigava o fóssil de Luzia, o mais antigo Homo Sapiens das Américas – ironicamente, uma mulher sapiens. Ela morreu de novo, tostada pela incompetência e pelo fracasso de amanuenses burocratas e barnabés sindicalistas que se abrigavam no ócio de fingir que tomavam conta de um tesouro cultural de valor incalculável. Não vou nem falar da primeira edição do quinhentista Os Lusíadas, de Luís de Camões, maior poema épico da literatura lusófona. Se começar agora, vêm-me as lágrimas e não paro de ir citando monumento a monumento, obras uma a uma, arte, cultura, história. Nós que já não as temos, ou temo-las tão pouco, agora ficamos mais miseráveis. Só um país que deixa furtarem a Taça Jules Rimet, onde se permite perecerem vidas e locais soterrados pela cobiça mineradora, onde jovens morrem queimados em uma Boate por falta de alvará e fiscalização e vergonha, em que se faz turismo em favelas dominadas pelo tráfico, só em um lugar desse isso é considerado normal e culturalmente aceitável.

Manutenção
Vá em frente e olhe no Dicionário, ou mesmo na Wikipedia. Vai ver o que significa o vocábulo “manutenção”. Se preferir falar difícil, use o verbo “manutenir” – este quase execrado de nosso português brasileiro. Fica fácil descobrir porque as coisas dão errado por aqui, porque pra nós manutenção é sinônimo (errado) de reparo e não de prevenção. Quando mandamos o carro para a revisão, buscamos prevenir problemas, e é isso que deveria significar a manutenção das coisas. Manter o que está bom, enquanto ainda está bom e para que não fique ruim. Simples assim. Mas complicamos, pensamos em “consertar” o que já quebrou quando solicitamos a manutenção de uma TV, por exemplo, ou qualquer outro eletrodoméstico. Imagine a cena: você chega ao quarto de hotel e vai tomar banho, mas o chuveiro está queimado. Liga para a recepção furibundo e todo já ensaboado e ouve do recepcionista que “vai chamar a manutenção”! Manutenção pra quê, cara pálida? Já está enguiçado o raio do chuveiro! É igual o sujeito que quer tratar da doença. Doença se cura. Se você trata-la, vai sevá-la e desenvolvê-la, não é mesmo? Truques da língua portuguesa que na verdade são reflexos de nossa cultura de só colocar fechadura em porta já arrombada. Não prevenimos problemas. Deixamos que eles venham. Como no caso do Museu Nacional do Rio de Janeiro e em tantos outros exemplos lamentáveis de ausência de gestão pública e privada preventiva de riscos. Isto é compliance.

Arte
Escrevi recentemente meu quarto livro e todos que me acompanham nessas humildes letras sabem que posso não ter talento, mas dá-lhe insistência! Procuro ir melhorando aqui e ali, tenho muita coisa publicada na grande mídia, mas de repente percebo que sou só um sujeito esforçado. Isso se dá quando leio um grande escritor, desses muito melhores do que eu sonharia ser um dia. Vejo que posso verter sangue, suor e lágrimas, mas o talento enorme e natural dos grandes artistas é imanente e tão natural a eles que é impossível só com esforços ininterruptos chegar-lhes aos pés. Escrevi tanto e tanto, e um belo dia relendo Saramago vejo-lhe num trecho de frase nuances de uma voz que jamais terei e uma plêiade de emoções fincadas em poucas palavras de uma concisão tão linda jamais alcançável por aqueles que não tenham de fato a sensibilidade dos grandiosos estetas. Ao descrever os cabelos da personagem Blimunda, em seu Memorial do Convento, Saramago se refere “à sua cor de mel sombrio”. Impecável. Inigualável. Não me leiam. Leiam Saramago.

Saudade
Outro dia senti uma necessidade enorme de ligar para meu pai. Tudo muito normal, não tivesse ele morrido há mais de uma década. Mas a vontade veio, nítida, real, intransponível, grandiloquente. Era como se ele estivesse do outro lado da linha me esperando. De certa forma, acredito que estava. E como eu precisava falar com ele, talvez para me sentir menos sozinho no mundo. Quem a gente ama nunca morre – mas como nos faz falta.

 O dito pelo não dito.
“Fisicamente, habitamos um espaço, mas, sentimentalmente, somos habitados por uma memória.” (José Saramago, escritor português).

RENATO ZUPO, Magistrado, Escritor.