Faço parte de uma das gerações que conviveu com Monsenhor Jerônimo Madureira Mancini, personagem de infinitas histórias, que sempre vêm à tona. Minha convivência foi como aluno do Ginásio Paraisense e Escola Técnica de Comércio São Sebastião, que depois teve outra nomenclatura, passando a ser chamado Colégio Comercial São Sebastião. Por alguns anos fui locutor na saudosa Rádio Difusora Paraisense, da qual ele era diretor. Semelhante aos tempos de estudante, de igual maneira no lado profissional, ficaram muitas lembranças vindas de seu gênio explosivo, de pavio curto, mas ao mesmo tempo de um coração generoso, que era capaz, de numa conversa acalorada redimir-se, e até pedir perdão, como pude presenciar certa feita.
Corintiano fervoroso. Ao final de suas homilias e em seus programas de rádio, não raras vezes arrematava comentando sobre jogos ocorridos na véspera, referindo-se de maneira especial, com o sotaque que lhe era próprio, ao ponta-esquerda Rivelino, de quem foi fã incondicional. Quando em 1977 o Corinthians sagrou-se campeão paulista depois de um jejum de quase vinte anos, Monsenhor foi presenteado com camisa autografada por jogadores campeões. Conseguida por amigos, ficou exposta por alguns dias no Cine São Sebastião, em meio a cartazes de filmes. Certamente foi um dos mais estimados presentes recebidos por ele.
Como líder religioso influenciou na política paraisense, no entanto não se candidatou a cargos eletivos. O lado proveitoso de sua participação foi traduzido em bolsas de estudo, conseguidas junto a deputados que possibilitaram alunos carentes, estudar em colégios dirigidos por ele, eram particulares, quando ainda não havia escolas estaduais em Paraíso. Tinha certa queda pela União Democrática Nacional (UDN) e se afinava com Pedro Aleixo, que em 1964 foi um dos líderes do “golpe militar” e depois se filiou à ARENA – Aliança Renovadora Nacional. Aleixo foi deputado estadual, federal, ministro da Educação e Cultura no governo Castelo Branco, e foi vice-presidente da República na chapa do presidente Artur da Costa e Silva. Monsenhor Mancini conseguiu muitas bolsas de estudo por intermédio de Pedro Aleixo, e, como bom cabo eleitoral, retribuiu com votos em algumas eleições.
Possivelmente por falta de malícia, Monsenhor Mancini se viu em pelo menos duas enroscadas no período do governo militar, daquelas de dar água pela barba. A primeira, quando a Rádio Difusora ainda funcionava na rua Pimenta de Pádua, e apareceu um militar do Exército, alta patente, e pediu para fazer um pronunciamento através da emissora. Pensando se tratar de alguém alinhado com os ideais “revolucionários”, Monsenhor sem maiores delongas lhe franqueou o microfone. O militar falou o quanto quis, mas contra o regime reinante no país. Ouvintes da Difusora ficaram intrigados, e queriam saber o porquê da programação ter por uns dois dias, sido somente musical, dia e noite, sem a presença de nenhum locutor. Também chamava a atenção o tradicional sobrado na rua Pimenta ter ficado de portas fechadas naquele período. Somente depois de muita explicação ao “pessoal que veio de fora”, a ZYA-4 voltou à normalidade. Poucos souberam o que de fato havia acontecido.
Se o primeiro susto levado por Monsenhor Mancini lhe foi causado por militar de alta patente, dissidente, o segundo foi por um padre, de igual maneira, esquerdista. Quem diria...
Era comum, vez por outra a vinda de sacerdotes colaboradores, notadamente em ocasiões especiais. Numa quinta-feira de Semana Santa, entre o final da década de 60 ou início da de 70, eu e o amigo Wilson Varela estávamos nas imediações do Cine São Sebastião, no costumeiro bate-papo. As celebrações na Matriz de São Sebastião eram transmitidas em direção à Praça Comendador José Honório, por um alto falante, daquele sistema de cornetas metálicas, fixado na entrada da igreja. Som alto, o suficiente para que despertasse nossa atenção, e interrompesse nossa prosa. O padre “colaborador” que até hoje não consegui descobrir o nome, mas tenho fé, descobrirei, em sua homilia, com ênfase teceu severas críticas ao governo, e em arremate disse que a legenda “Ordem e Progresso” no Pavilhão Nacional, deveria ser substituída por “desordem e regresso”. Isso numa época em que as pessoas costumavam primeiramente, olhar de lado e conferir, se, bem baixinho poderiam arriscar comentar algo sobre política, com cisma de que até “as paredes” pudessem ter ouvidos.
Colocando Monsenhor Mancini numa “fria”, de saia justa sem tamanho, o religioso anoiteceu, mas não amanheceu. No dia seguinte quando o Tenente Daher (era o chefe da Delegacia de Alistamento Militar em Paraíso), e meu amigo hoje oficial da reserva, Wilson Vilar, à época Sargento Instrutor do Tiro de Guerra, foram à casa paroquial, o jovem padre já estava longe, pernas pra que te quero.
De sobra, o religioso deixou para Monsenhor o compromisso de “pagar o pato”, respondendo a inquérito militar, pendenga penitenciada com algumas viagens até Pouso Alegre, para falar com o comandante daquela unidade do Exército. E nessa época, esteve por lá o Coronel Ustra Brilhante, uma das figuras mais questionadas quando o tema é repressão no período de vinte anos do governo militar, ou, ditadura, termo que outros preferem, mas não vamos aqui adentrar nesta seara. Não sei se foi ele quem ouviu Monsenhor. Pode ter sido.
Monsenhor Mancini deixou importante legado. Na sua maneira de ser, foi o diretor de escola que percorria corredores do Ginásio e Escola de Comércio conferindo quem havia faltado, e os faltantes, não raras vezes, deveriam comparecer acompanhados de seus pais. Implantou a Escola profissionalizante São José, e a Sopa da Providência criada por ele minimizou a fome de muitos necessitados.
Foi o sacerdote que mantinha contato com suas ovelhas pela “Lira Evangélica” e “A Voz do Pastor” pela Rádio Difusora Paraisense. Embora pudesse, não se despregava da batina, que aos poucos ia ficando perfurada por pequenas fagulhas do inseparável charuto. Está intimamente ligado à história de Paraíso.