Fábio Pimenta de Pádua
Ao entardecer de um belo dia de sol, límpido de nuvens, sob o imaculado céu azul anil de um mês de inverno, sentado em um velho banco da praça de minha Paraíso, presenciava os passos lentos das pessoas despreocupadas, como que a absorver em languidez a salutar atmosfera, ou o circular buliçoso dos pardais arribando em estridência às copadas de frondosas árvores.
Nessa tepidez, proporcionada pelo clima interiorano das alterosas, divagando em conversas amenas com as pessoas do lugar, em dado momento o bimbalhar frenético dos sinos da Matriz, soberanos percutindo pelas casas e alcançando os campos, desperta nossa atenção pelo final do dia, chamando às preces os fiéis devotos do Santo Sebastião, em sua invocação a Deus.
Nesse momento de reflexão cristã, mirando a imponente torre, alicerçada pela fé inabalável dos antepassados, seus idealizadores e construtores, me vêm à lembrança os meados da década de 30.
Empolgados pela expectativa da chegada, para o ano seguinte, de três potentosos sinos, encomendados e doados pela Senhora Dolores Pimenta de Pádua, entenderam o Monsenhor José Phillipe da Silveira e uma plêiade de homens da comunidade de providenciar a construção de uma torre de boa altura e firmeza, para poder abrigar a generosa oferta.
Para tanto, esse Vigário, o 14.º da Paróquia, munido das precauções devidas, endereçou e conseguiu do Senhor Bispo Dom Ranulfo da Silva Farias, em 4 de julho de 1935, a requerida licença para demolir a antiga torre da Igreja.
É de se louvar a presteza com que a equipe construtora constituída conseguiu em tão curto espaço de tempo, após a demolição, erigir uma esbelta e afilada torre. Recebendo enormes vigas de concreto, ganhou alturas, impondo-se como símbolo real da cristandade. A emoldurá-la, a imensidão do céu matizado de nuvens bonaçosas acariciando a sua crista, trazendo bênçãos à gentes e aos trabalhadores.
Assim pela sua imponência e segundo a gabolice de alguns, estava essa bela edificação a fazer sombra aos municípios vizinhos, além de causar-lhes inveja. Porém, com a construção da torre, adveio o espanto e temor, principalmente àquelas famílias que moravam ao derredor da Matriz.
Esse pesadelo aumentou ao receber a esbelta e afilada estrutura em seu cimo os três mastodônticos sinos (como diria o meu saudoso e ilustre Professor Raimundo Calafio-ri), pelo expressivo volume e peso desses conclamadores de fiéis.
O assunto principal na cidade, naqueles dias, era a torre e seu fino perfil, ensejando as mais extravagantes conjeturas. Esqueceram-se desavenças políticas, sociais e religiosas, Até as crianças da escola e os alunos do Ginásio se jactavam da primazia de sua cidade estar sendo aquinhoada por tão expressiva obra de arte, a “9.ª Maravilha do Mundo”.
A comissão de festejos já se preocupava em delinear os pormenores do ritual de inauguração. É de se imaginar com isso aquela pitada de “admiração” que perpassava pelo Bispado, em sentir a generosidade dos Paraisenses.
Mas havia gente preocupada com a segurança de seus bens e de suas famílias circunjacentes à obra, devido ao peso excessivo instalado no alto da edificação, ao desprovimento de tapume, e pela falta de se assentar tijolos nas quatro paredes que ganhavam alturas, não ensejando, assim, consistência e compatibilidade a toda aquela estrutura.
Certa noite, aproveitando o morninho do outono, meu pai nos convidou a tomar sorvete no estabelecimento do Senhor João Sposito. Uma vez instalados e sorvendo aquela delícia, alternada com goles d’água para amortecer uma repentina dor de cabeça provocada pelo arrepio do gelo, o patriarca dos Spositos, com seu impecável avental branco, veio juntar-se a nós e em seus arroubos de italianice nos assuntos de interesses comuns passou a relatar a sua evidente preocupação e seus cuidados ante um possível perigo de desmoronamento daquela monumental obra sobre a soa sorveteria, que se encontrava a mais próxima. Temia que a estrutura não suportasse um pé-de-vento e fosse jogada sobre a sua cabeça. Meu pai o confortou, dizendo que confiava na competência e habilidade dos construtores. Enfim, a conversa se desvaneceu com alívio para o Seu João.
Chegado o dia 22 de agosto de 1936, o decano da cidade, o competente chefe político, o plantador de fazendas e arrojado empresário Antônio Pimenta de Pádua, o Pimentão, pai da Dona Dolores Pimenta de Pádua, rodeado de familiares vindos dos mais distantes pontos do país, anunciou o seu natalício em 89 badaladas, coroando, assim, num dos marcos indeléveis de sua existência plena de realizações, esse memorável acontecimento.
Mas aquele ano de 1936 fora atípico, no que tange ao clima de inverno, por seguidas e devastadoras frentes frias, que assolaram o sul do país, inclusive o litoral, com reflexos em partes do sudeste.
A Seção Nostalgia, da Gazeta do Povo de Curitiba, do dia 04 de agosto de 1996 cita: segundo o jornal da época: “As formidáveis geadas que tivemos nos dias 9 e 10 do corrente (agosto de 1936) se fizeram sentir também em Morretes, Paranaguá e outras cidades litorâneas, causando estragos à lavoura ... só comparável ao ocorrido naquela região em 1917, quando foi destruída toda a lavoura de cana, somente recuperada com a importação de novas mudas em 1923... acabando com o jasmim-silvestre, usado na fabricação de papel... Naquela ano de 1936, o que a geada não matou, o tufão liquidou”.
Fica plenamente explicado o fenômeno atmosférico que propiciou o que se ocorreu, com a chegada de outra frente fria dias mais tarde. O encontro de massa de ar frio com a quente do interior provocou o vendaval, seguido de tempestade naquele dia 26 de agosto de 1936.
Como Deus escreve certo por linhas tortas, esse citado dia amanheceu com a bruma seca, acentuada sob manto amarelado, característico de tormenta. Os ventos do quadrante leste, predominantes nessa época, cederam lugar ao quente noroeste, e este se foi avolumando e trazendo consigo nuvens carregadas. Em dado momento, as gigantescas e antagônicas massas de ar se envolveram em violenta refrega, em colossal abraço e nesse rodopiar frenético, como se fora um tornado, veio justamente incidir sobre a desprotegida torre que, em fragorosos estalos, retorceu-se sobre os pilares mestres em sua base, ao embalo do descomunal peso dos sinos. E assim, nesse fragor, estatelou-se a soberba construção sobre sua base, deixando incólumes as casas vizinhas, inclusive a própria Igreja.
Ruíram com a torre não somente os sonhos e sacrifícios de um povo. O acontecimento deixou, por momentos, quebrantadas aquelas almas generosas.
Ainda caía uma chuvinha fina quando os atônitos operários, saindo de seus abrigos, vieram presenciar o que restou de suas habilidades e esforços. Por graça Divina, lá estavam intactos os três sinos, recobertos pelos escombros, apenas um deles apresentando uma leve bicada em sua borda.
Logo mais apareceu o Monsenhor Phillipe e, presenciando aquela desolada cena, foi para junto ao Sacrário da Igreja e lá chorou copiosamente, como um desamparado... E, assim, naquela prostração, lembrou-se de agradecer ao Misericordioso pela graça de que ninguém se houvesse ferido ou tivesse ceifado o seu bem maior.
Providenciada a retirada dos sinos, foram estes depositados dentro da Matriz, a poucos passos da entrada, e lá, pelo espaço de quase quatro anos, ficaram expostos aos olhares dos fiéis.
Daí a preocupação unânime de se construir uma nova torre, agora com f´e entusiasmo redobrados, que fosse volumosa em sua base a afilando gradativamente, para abrigar confortavelmente os três portentosos sinos, os maiores do Brasil. Estes voltara a ecoar a sua sonoridade por toda a cidade e arredores com a inauguração dessa atual torrem em 19 de janeiro de 1941, sendo vigário o Monsenhor Jerônimo Madureira Mancini.
Assim é a nossa vida e suas nuances... Quando vem o revés e nos sentimos abatidos, desamparados, devemos nos escudar na oração e naquele pensamento das Pegadas na Areia, onde os dias de nossas vidas em que vimos apenas uma pegada, “foram os dias em que te carreguei no colo”.
Do livro “A caminho de Paraíso”.