Joel Cintra Borges (1940-2019)
Com enorme surpresa tivemos a notícia do falecimento em 18/3 do amigo Joel Cintra Borges, aos 78 anos de idade. A causa da morte foi infarto.
Conheci o amigo Joel em 1985 quando eu era ainda adolescente e fui buscar para ler no fim de semana um livro na biblioteca da Escola Estadual São Gabriel, em Cássia/MG, cidade em que Joel nascera e onde morei por 18 anos.
Ao passar ao lado de uma mesa vi uma imagem curiosa de um tabuleiro, que parecia ser igual ao de damas que eu brincava com os colegas quando criança, mas que havia peças diferentes nele.
Intrigado, perguntei o que era aquilo e o professor (o Joel!), informou ser um jogo chamado xadrez e que o estudo e a prática dele desenvolvia importantes habilidades cognitivas e comportamentais.
Ele me explicou que era veterinário, mas que ia ali voluntariamente uma vez por semana na biblioteca da escola ensinar os estudantes que se interessassem.
Perguntou pra mim: - Quer aprender? Eu disse: - Claro! E assim foi que tive o primeiro contato com o amigo Joel. Mas, a priori o xadrez não me atraiu e aquilo ficou esquecido.
Em 1989 novamente encontro o Joel, mas desta feita quando eu trabalhava no Banco do Brasil como menor bancário e ele estava de passagem pela agência.
Havia dois amigos no banco que jogavam xadrez muito bem (Jairo e Tusa) e foi nesse mesmo ano que reencontrei o jogo, aí então com muita vontade de progredir nele.
Quando eu soube que o enxadrista mais famoso da região à época estava ali no banco, desci rapidamente as escadas e perguntei a ele se podíamos jogar uma partida. Ele respondeu que sim, que seria um prazer, entretanto, estava morando em São Sebastião do Paraíso.
Disse a ele que eu tinha nascido em Paraíso e que a família toda da minha mãe morava no município. Faria uma visita à família e jogaríamos nossa partida.
Bom, isso foi no final de 1989. No início de 1990 tivemos o primeiro embate. A disputa foi no Hotel Tropical, que ficava na esquina próximo à Praça da Fonte. Joel fez o sorteio das cores e coube a ele as pretas.
Foi nesse momento então que me deparei com uma mente aguçada e criativa. Jogando um xadrez sólido e rechaçando todas as minhas investidas de ataque, dominou posicionalmente a partida e me venceu facilmente em pouco mais de 20 lances.
Pude observar toda a habilidade do mestre Joel nos tabuleiros e a sabedoria dele também fora das 64 casas, pois antes do referido jogo conversamos sobre assuntos diversos e ele demonstrou enorme conhecimento de tudo.
O xadrez começou oficialmente aqui em São Sebastião do Paraíso em 1992 com a implantação de uma escolinha no Ouro Verde Tênis Clube. Joel esteve na primeira reunião para a implantação do xadrez no clube, foi quem me indicou e por lá fiquei durante 17 anos como professor. Sempre que podia ele ia ao clube jogar com os alunos e participar dos torneios que lá fazíamos.
Foi algo pioneiro, pois não havia notícia de aulas de xadrez sendo ministradas regularmente em um clube social no início dos anos 90 na região. Hoje o xadrez é popular em clubes e escolas Brasil afora e pelo mundo com a Federação Internacional de Xadrez tendo 189 países filiados. Agora, ter esta percepção há quase três décadas só mesmo uma mente empreendedora como a do Joel.
Em 1992 Paraíso conquistou pela primeira vez (de um total de oito títulos) os Jogos do Interior de Minas - JIMI na modalidade xadrez em disputa acirradíssima. Sebastião Lopes de Sousa, Erlon Cezar Braghini, Joel e eu formávamos a equipe. Só um de nós conseguiu fazer 100% dos pontos vencendo todos os quatro jogos e este jogador foi justamente o Joel, mostrando um xadrez fino e combativo. Muitos anos depois ele me confidenciou que este foi o momento mais feliz que ele teve no xadrez, chorando de alegria ao receber o bonito troféu de campeão estadual por equipe. Viemos cantando, rindo, brincando de Poços de Caldas até São Sebastião do Paraíso, tamanha a grandiosidade da conquista para uma equipe modesta como era a nossa!
O ano de 1994 foi um marco para o xadrez paraisense com a implantação de um projeto piloto de xadrez nas escolas capitaneado por Sebastião Lopes, algo também bastante inovador na região por aqueles tempos. Joel vibrou com a notícia, deu sugestões interessantes para alavancar o projeto e emprestou livros de sua seleta biblioteca de xadrez para prepararmos adequadamente as aulas. Conseguiu, inclusive, no ano seguinte que a Prefeitura Municipal contratasse um técnico de xadrez.
Neste mesmo ano de 1994 nascia, por iniciativa ainda de Sebastião Lopes, o Clube de Xadrez de São Sebastião do Paraíso, hoje referência nacional com uma estrutura na Arena Olímpica de quase 300 metros quadrados, com aulas gratuitas de segunda à sexta-feira (manhã/tarde) e torneios aos fins de semana. Esse era um grande sonho do Joel, que fez parte, inclusive, da primeira diretoria da entidade. Ele dizia que deveria haver um local aberto para a comunidade aprender xadrez - crianças, jovens e adultos. Sua última visita ao clube foi para disputar o Circuito Semanal de Blitz, no último sábado (16/3). Disputou nove rodadas, num formato de todos contra todos.
Nosso homenageado disputou centenas de campeonatos em Paraíso e região. Colecionou títulos e histórias das mais interessantes. Com um bom humor invejável, brincava com tudo e com todos. Entre as muitas passagens pitorescas dele nos tabuleiros, lembro que durante um das competições que disputou no Ouro Verde, antes do torneio ele chamou um garotinho para jogar amistosamente e assim ter a oportunidade de dar umas lições ao menino até que a prova começasse (era praxe nos eventos o Joel passar algum ensinamento àqueles que estavam ingressando na modalidade). Bom, os dois jogaram informalmente e o Joel deu umas lições ao jovem enxadrista. Em seguida saiu o emparceiramento da primeira rodada e os dois caíram na mesma mesa. Eu estava de árbitro e fui coletando os resultados mesa a mesa. Quando cheguei no tabuleiro deles vi que o garotinho havia, contra todos os prognósticos, vencido o Joel! Achei que meu amigo iria ficar sem graça com o resultado inusitado, mas ele todo sorridente exclamou: - Rapaz, e não é que minhas lições foram boas mesmo sô. Veja, uns minutinhos que ensinei o menino e ele já foi capaz de me vencer! Acho que vou mudar de profissão, deixar de ser veterinário e virar professor de xadrez. Tenho um futuro brilhante pela frente! Foi uma gargalhada geral. Rimos todos, mas quem mais se divertiu com a situação foi nosso biografado que anos depois ainda lembrava desta passagem.
No campo da literatura de xadrez, Joel queria um livro conceitual de aberturas. Não encontrando no mercado para comprar perguntou se eu gostaria de escrever com ele um livro nesse perfil. Topei na hora, pois era justamente o que eu buscava para trabalhar com meus alunos. Foram cinco anos de muita pesquisa e em 2004 o livro foi publicado pela Editora Ciência Moderna, do Rio de Janeiro. Esgotado em 2006 nos reunimos por mais seis meses para revisar e ampliar o livro. Em 2015 se esgotou novamente e hoje circula uma edição do livro reimpressa em 2016. Um trabalho primoroso, com revisão técnica e apresentação do mestre internacional Herman Claudius, que nos legou muitos elogios da comunidade enxadrística nacional, pois o livro se espalhou por todo o país. Joel foi quem sugeriu o sugestivo título: "O Espírito da Abertura". Com sua arte de escrever, o conteúdo ficou leve e gostoso de estudar. Justamente o que ele queria! A diagramação pelo Vasco também colaborou muito para o excelente resultado final.
Em 2010 Joel e eu fomos convidados a escrever um livro de xadrez para iniciantes pela Editora Universo dos Livros, de São Paulo, que seria vendido em bancas de jornal e posteriormente em formato digital. Nos reunimos novamente e saiu durante as férias do meio do ano de 2009 o livro "Os Mestres do Xadrez". Inicialmente pensamos no nome "O Mundo do Xadrez", porém a editora achou mais atrativo o primeiro título. Novamente, Joel dava sua contribuição para o desenvolvimento do xadrez.
E, em 2018, Joel lançou pelo Clube de Autores Publicações S/A, de Santa Catarina, o livro "Uma Janela para o Infinito" reunindo uma seleção de textos que ele escreveu no Jornal do Sudoeste a convite do diretor Nelson por cerca de 30 anos. Quando autografou e me presenteou com um exemplar do livro durante torneio que disputava no Clube de Xadrez de São Sebastião do Paraíso, ele estava radiante. Este é o legado que deixo sobre a minha visão de mundo, afirmou. E virão mais livros. O próximo será sobre Tiradentes, estou pesquisando, ele falou. Bom, infelizmente não deu tempo...
Joel sugeriu jogarmos no domingo (17/3) a primeira etapa do Circuito Regional de Xadrez, em Batatais/SP. Reunimos uma boa equipe do clube e marcamos de passar na casa dele às 8h para irmos ao evento. Pela primeira vez em quase 30 anos, infelizmente, a porta não estava aberta... O mentor do xadrez paraisense surpreendentemente não estava lá de portas abertas e seu costumeiro sorriso nos esperando, chamando para entrar, tomar café da manhã, ocasião em que sempre eu comentava com ele sua coluna de jornal e Joel a minha. Dizia: - Eu li seu texto! E falava tudo o que tinha nele. E eu retrucava: - Também li a sua coluna! E comentava o conteúdo dela.
Nas viagens com o Joel nunca deixávamos o rádio ligado. Era só boa prosa. Os assuntos giravam em torno de temas filosóficos como a maiêutica de Sócrates, a visão de paideia de Platão, o Liceu de Aristóteles e as conquistas de Alexandre Magno, o racionalismo de Decartes, as teorias iluministas representadas por Russeau... Na literatura os assuntos eram acerca de Machado de Assis, Carlos Drummond de Andrade, Euclides da Cunha, Graciliano Ramos, Érico Veríssimo, Guimarães Rosa, dentre outros grandes. Partindo para a litetura universal falávamos de Tolstói, Shakespeare, Cervantes, Fernando Pessoa, Gabriel Garcia Marquez, etc. Cinema era um dos temas preferidos dele onde assistimos dezenas de filmes juntos (primeiro umas partidas de xadrez e depois um bom filme para fechar com chave de ouro o dia), onde minha última indicação foi "O Menino que Descobriu o Vento". Tinha um interesse particular por línguas, em especial o inglês que estudava toda semana com sua professora Vanessa para se aperfeiçoar e viajar o mundo, tendo conhecido aproximadamente 30 países. Psicologia, metafísica, religião, política, economia... qualquer coisa ele abordava com conhecimento de causa, com fundamentação.
Um domingo ao mês também saíamos à rua para a entrega do jornal Mensagem Espírita, que ele criou e dirigiu durante 26 anos. Passávamos cerca de três horas falando de assuntos variados, tomando coca-cola (que ele adorava!) e quando era possível estendíamos a prosa por mais tempo aqui em casa, com ele vindo almoçar conosco. A última vez que veio olhamos várias partidas de xadrez, particularmente do Shirov retiradas do livro "Fogo no Tabuleiro", pois ele ficava encantado com as extraordinárias combinações do famoso grande mestre.
Nossos papos atuais estavam convergindo mais para a psicologia, especialmente a de desenvolvimento humano e de aprendizagem. Comentei com ele do livro "Rápido e Devagar - Duas Formas de Pensar", do Daniel Kahneman, e das teorias pós-modernas (ou melhor, de mundo líquido) do Zygmunt Bauman. Isso dá uma boa crônica esta explicação de que o mundo atual está sem forma, que tudo se encontra em mutação, ele lembrou.
Já conheci muita gente nesse mundo, entretanto, Joel foi de longe a pessoa mais inteligente e ética que convivi. Um lutador na vida, criando os filhos Heloísa e Guilherme com muito amor e dedicação, falando deles sempre com um orgulho enorme pelos profissionais competentes que se tornaram como advogados e pessoas de índole irretocável. Seus olhos também brilhavam quando o assunto eram os cinco netinhos!
Se segundo a visão espírita, que ele abraçou com muita fé e entusiasmo, cada vida devemos lutar para progredir intelectualmente e moralmente, Joel deu um gigantesco salto evolutivo nesta sua brilhante e missionária jornada entre nós.
Deixa um legado extraordinário com o jornal Mensagem Espírita através de 310 edições mensais, bem como ações relevantes no Movimento Espírita como a passagem pela diretoria da AME, em especial pelo ciclo de palestras agendado nos Centros Espíritas em sua gestão.
Na veterinária estudou na UFMG, em sua época a universidade melhor conceituada do país no curso que escolheu. Fez especialização em Israel e era um profundo estudioso da área tendo ido a inúmeros congressos e seminários, uma referência, inclusive, para muitos dos seus colegas de profissão. A afinidade era tão grande com os animais que parecia que ao chegar perto dos bichos eles ficavam curados. Estive em muitas fazendas e em casas aqui na cidade acompanhando os atendimentos do Joel e um dia perguntei: - Que magnetismo é esse que os animais ficam bons só de você chegar perto?! Ele falou: - Conhecimento de medicina-veterinária e um pouco de reza também. E piscou o olho!
Bom, para falar do Joel não tinha como não ser um textão e, seguindo a linha positiva e informal que nos cativou, um texto bem distante de uma nota de falecimento habitual. A biografia do Joel daria uma bela coleção de livros com histórias de sucesso, porém, neste momento é esta singela homenagem que fazemos ao nosso mestre, resumindo em algumas linhas a história deste ser humano incrível e genial que dedicou sua vida a fazer o bem e a instruir seus semelhantes.
Para finalizar, quando eu chegar do outro lado estará lá com certeza um tabuleiro de xadrez esperando para continuarmos as boas batalhas vividas aqui na Terra... Obrigado, amigo Joel, por ter feito tanto por todos aqueles que tiveram o privilégio de conviver com você.
Deixo a seguir uma das crônicas que consta no livro "Uma Janela para o Infinito", homenagem feita ao xadrez em seu livro, e uma frase que o Joel citava muito: “Nascer, morrer, renascer ainda e progredir continuamente, tal é a lei”. Esta frase encontra-se no túmulo de Kardec.
Gérson Peres Batista - Presidente do Clube de Xadrez de São Sebastião do Paraíso
*****
XADREZ, O MUNDO DA FANTASIA
Autor: Joel Cintra Borges
O jogo de xadrez é a terra do faz de conta, habitada por reis, damas, cavaleiros, bispos e peões, ladeados por torres belas e altaneiras.
Muita gente pensa que é um jogo difícil, que exige bastante estudo e que só é praticado por aqueles que têm Q.I. muito alto. Isso não é verdade. Qualquer pessoa com inteligência mediana pode aprender a jogar com poucas explicações.
Uma vez que aprendamos as regras, que são simples, estaremos aptos a participar da peleja entre os dois reinos: o de peças brancas e o de peças pretas. Prontos para deixar, por maravilhosos momentos, nossas preocupações, compromissos, alegrias e tristezas.
O objetivo é capturar o rei adversário, dar-lhe xeque-mate (expressão persa que quer dizer: o rei está morto). Não interessa o número de peças: perdeu o rei, perdeu o jogo. Isso dá origem a formosas combinações, em que se sacrifica cavalo, bispo, torre, ou até a dama, para chegar ao monarca adversário.
Na idade média o xadrez era praticado principalmente pelos nobres, donde passou a ser conhecido como “jogo dos reis”. Algumas damas jogavam muito bem. Aliás, para jogar xadrez, os homens podiam entrar nos aposentos das mulheres sem que isso fosse motivo de escândalo. Era, também, medida de inteligência. Quando se queria falar que alguém era tolo, costumava-se dizer:
– Esse cavalheiro não distingue um bispo de um peão!
A origem do xadrez não é muito clara, mas, a maioria dos estudiosos do assunto acredita que ele tenha surgido na Índia, há mais de dois mil anos, derivado de um jogo chamado Chaturanga. Há, também, uma lenda que diz que o rajá Balhait, no século V a.C., pediu ao sábio brâmane Sissa que criasse um jogo capaz de desenvolver as mais nobres qualidades humanas em sua corte, tais como: prudência, diligência, visão e conhecimento. E ele inventou o xadrez.