LÍNGUA SOLTA

(Re) significações de uma pandemia

Por: Michelle Aparecida Pereira Lopes | Categoria: Do leitor | 03-05-2020 20:26 | 862
Michelle Aparecida Pereira Lopes
Michelle Aparecida Pereira Lopes Foto: Reprodução

Por Michelle Lopes

Na minha linha de pesquisa – a Análise do Discurso, usamos bastante a palavra (re)significação. Nós a escrevemos do modo como a escrevi aqui, pois queremos indicar que uma palavra ou uma expressão pode ser compreendida de modo diferente, ao longo do tempo, produzindo outros sentidos além daquele que já produziu até então. Disso vem que, ao observarmos os discursos que circulam em nossa sociedade, é comum buscarmos uma regularidade dos sentidos de um dito, ao longo de um período de tempo, até que encontremos o momento em que aquele dito tenha começado a produzir outro(s) sentido(s), quando dizemos então que começou a ser (re) significado.

É preciso dizer ainda que um dito (re)significado não impede que o(s) sentido(s) anteriores não possam mais ser compreendidos; ao contrário, os ditos possuem uma potência de sentido, algo como se tanto os sentidos anteriores quanto os novos pudessem permanecer sendo produzidos, havendo, contudo, uma predominância de um ou de outro(s) a cada momento. Nós, analistas do discurso, devemos observar tudo isso de modo muito criterioso, sem deixar escapar a noção de que os ditos vão sendo (re)significados sobretudo pelas condições nas quais emergem.

Tudo o que estamos vivendo com a pandemia da covid-19 tem me feito pensar nos ditos que nossa sociedade vem (re)significando. De todos, chama-me muito a atenção a expressão “fique em casa”. Até bem pouco tempo, “ficar em casa” poderia significar uma espécie de rejeição da vida social. Quantas vezes chegamos a julgar alguém como antissocial, exatamente porque tal pessoa gostava de ficar em casa? Podemos pensar também em como o “ficar em casa”, especialmente em períodos de tempo destinados ao lazer, como as férias e os finais de semana, poderia distinguir os sujeitos por sua condição socioeconômica: de um lado, aqueles que podem financiar uma atividade de lazer, uma viagem, por exemplo, e de outro, aqueles que não possuem condições de fazê-lo, justamente esses, ficavam em casa. E agora?

A pandemia tem mostrado uma inversão brusca nesse cenário, já que ocorre exatamente o contrário: aqueles que possuem bons recursos financeiros – e sabemos que no Brasil isso é uma minoria – podem e ficam reclusos em suas casas. Por outro lado, a maioria da população, justamente aquela que mais ficava em casa nas férias e nos finais de semana, precisa sair para trabalhar.

Por isso, consideremos como a expressão “fique em casa” está sendo (re) significada: se antes poderia produzir o sentido do tédio e/ou a antipatia social, em nossos dias equivale a resguardar-se da doença; se antes era sinônimo de não ter o que fazer, ou não ter como financiar algum lazer, hoje vem significando proteger a si mesmo. Sentidos (re)significados acabam por promover também mudanças no comportamento dos sujeitos.

Nesse sentido, a expressão (re)significa também o próprio gesto de ficar em casa. Se antes, equivalia a descanso, afinal, só podíamos passar o maior tempo em casa, quando não estávamos trabalhando, agora temos visto que, ao ficar em casa, ainda que seja por uma pandemia, é preciso estar produzindo algo, seja uma nova receita, seja uma atividade física, sejam as aulas on-line, as reuniões, etc.

Tudo isso muda também o tipo de conteúdo que temos visto circular nas redes sociais; fervilham as fotos de tudo que está sendo feito em casa, por aqueles que podem ficar em casa, mais especialmente por aqueles que podem ficar em casa e não precisam trabalhar: não é possível ostentar a viagem a Paris, nesse momento, mas é possível mostrar o tamanho da piscina, ou a sala, ou o jardim, o treino fitness, ou mesmo a cozinha com mil e um eletrodomésticos.

E assim, seguimos! Entre tantas (re)significações, também nós, sujeitos contemporâneos seremos (re)significados.

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Michelle Aparecida Pereira Lopes é uma professora apaixonada pelas Letras. É doutora em Linguística pela Universidade Federal de São Carlos (UFS Car). Ministra as disciplinas relacionadas à Língua Portuguesa na Universidade do Estado de Minas Gerais, UEMG - Unidade Passos. Também ensina Gramática no Ensino Médio e Cursinho do Colégio Objetivo NHN, Passos.