O coronavírus impôs ao setor de Saúde de todo o mundo um ritmo de trabalho a que poucos profissionais da área estiveram submetidos, a não ser aqueles que já tinham experiências com grandes catástrofes, o que não é o caso daqueles que atuam no Brasil. Além disso, o enfrentamento à Covid-19 exigiu equilíbrio emocional sobre-humano, resistência física e sabedoria.
Agora em tempos mais tranquilos propiciados pela vacinação, esses profissionais que estiveram atuando nessa batalha conseguem expor o que sentiram, viram e viveram, mas alertam que a atenção tem que ser permanente.
É o caso do médico clínico e cardiologista da Santa Casa de São Sebastião do Paraíso Flávio Vilela Diogo, 40 anos, que também é, desde 2013, coordenador de equipe de cardiologia do Hospital do Coração da mesma instituição e atuou na linha de frente no enfrentamento ao coronavírus. Ele fala que não há médicos super-heróis, ao contrário, todos são humanos assim como cada paciente tratado. “Todos nós, médicos, tivemos medo da infecção, sim, assim como todas as pessoas de bom senso. O receio maior foi o de levar o vírus para casa, para filho, esposa, pai e mãe. Essa questão sempre me preocupou”, relata.
O médico generalista Augusto Pena Malschitzky Crespo, 34 anos, atua como plantonista e diretor clínico da Unidade de Pronto Atendimento-UPA de São Sebastião do Paraíso. Também é plantonista e diretor clínico e técnico do Hospital e Santa Casa de Jacuí, além de ser o coordenador do “Centro Covid”, que foi implantado em Paraíso, no início da pandemia, com o objetivo de fornecer os primeiros cuidados aos pacientes diagnosticados com a doença e dar outros encaminhamentos.
Ele diz que o temor não assolou os profissionais de saúde em um momento específico, mas a todo instante, inclusive atualmente. “No início, a completa falta de informações, estudos e experiências para nos apoiarmos nos fez sentir como se andássemos no escuro. Perdemos colegas, amigos e parentes. Sempre expostos na linha de frente, com o medo de um dia poder ser a nossa vez também. A pandemia não acabou, o vírus não foi embora, essa falsa sensação de proteção ainda pode nos trazer desagradáveis surpresas. Por mais de oito meses seguidos fiquei sem ver família e amigos. Até hoje ainda mantenho cautela considerável, apesar de, aos poucos, estar tentando voltar ao mais próximo da normalidade possível, na medida em que todos os próximos a mim estão vacinados”, conta.
Pior fase e as intensas dificuldades
Profissionais de saúde enfrentaram grandes dificuldades em vários momentos, mas houve a pior fase da pandemia, quando o número de casos parecia que não iria parar de subir e ainda não havia nenhum tratamento que pudesse proporcionar maior segurança quando ministrado. Assim como não existe até hoje.
Para o cardiologista Flávio, o pior momento foi março e abril deste ano, quando os leitos da enfermaria e de UTI da Santa Casa estiveram lotados. “Houve pacientes aguardando vaga em sala de emergência e até nos quartos, muitos óbitos em um mesmo dia. Todos os colegas que lá trabalharam sentiram juntos essa agonia. Mas o importante é que ninguém ficou sem atendimento ou suprimentos.”
O coordenador do Centro Covid reflete: “Alguns deram a sorte de apenas terem visto o caos pelos noticiários. Outros viveram a realidade. Outros ainda morreram por não termos dado conta. Assim foi o pico da pandemia, um pesadelo diário, que nos marcou para sempre. Eu me lembro de por diversas vezes ter pensado em desistir, em ter fraquejado e me sentido incapaz. Mas junto de tantos outros colegas da medicina, enfermagem, e todas outras profissões que estavam batalhando conosco, me reer-guia”, diz Augusto Crespo.
A perda de colegas e entes queridos que também fazia parte dessa rotina de embate contra a doença. O médico Flávio se recorda que a Covid abateu a técnica de enfermagem, com 30 anos de profissão, Laura Aparecida Marques Batista, 65 anos e o médico cardiologista Maurício Borges Marques. “Também perdi médicos professores que eram muito queridos na faculdade onde cursei Medicina”.
O médico Augusto explica como foram as perdas de vidas: “Perdi alguns poucos colegas. Perdi outros poucos colegas de vida. Familiares meus e de amigos alguns poucos mais. O problema é que juntando os poucos de cada um, perdemos muitos. Perdemos no Brasil mais de 600 mil vidas – isso apenas em números oficiais –, são os poucos de cada somados”.
Desafios e mais desafios
Há relatos mundiais que descrevem que a agonia dos pacientes de Covid-19 é intensa e sofrida. Os mesmos relatos dão conta de que os profissionais de saúde vivem agonia intensa e sofrida para salvar a quem puderem. O médico Flávio dá uma ideia de que é realmente o que acontece dentro dos hospitais. “O maior desafio na pior fase da doença em Paraíso era tentar fazer os pacientes respirarem. Mesmo os que estavam com oxigênio em fluxo alto não conseguiam alívio e não havia medicamento capaz de reverter isso rapidamente.
Assistimos a muito sofrimento sem poder ajudar o suficiente e a sensação de impotência era diária. Difícil era dar notícias para as famílias, que via o parente sem melhora dia após dia”, conta ele.
Na rotina de trabalho do médico Augusto não era diferente, mas para ele há outros desafios também. “O maior desafio ainda está aí – é a ignorância, a falta de informação e, acima de tudo, a desinforma-ção proposital e criminosa – esses fatos são os piores propagadores do vírus. À medida que a ciência foi avançando, vimos um movimento cada vez mais forte remando contra e causando desunião. Mortes e polarização em um momento tão frágil e delicado para todos.
Não tenho dúvidas que campanhas de educação já seriam suficientes para evitar milhares de mortes. Assim como campanhas de distribuição de máscaras, campanhas de incentivo e investimentos em vacinação precoce. Só nos resta esperar que todos esses que foram omissos ou propositadamente contribuíram com a propagação do vírus, sejam julgados culpados e paguem pelos seus crimes.”
E daqui para frente?
Manter o coronavírus longe é dever de cada um. O cardiologista Flávio ensina como: “As pessoas têm que levar a sério a vacinação, em todas as doses que forem necessárias, e parar de divulgar inverdades sobre o assunto. Só existe um caminho para tudo poder voltar ao normal – o da vacina. Agradeço a Deus pela proteção a todos os profissionais da área de saúde, pois é isso que nos possibilita continuar o trabalho. Lamento muito as vidas perdidas, nossos parentes, amigos de infância; lamento a politização dessa tragédia. Espero que todos estejamos mais serenos e maduros para enfrentar qualquer outra futura crise de saúde pública no Brasil”, aconselha.
Augusto completa: “Não subestime o vírus. A pandemia não acabou! Acredite e apoie a ciência, fazendo sua parte para ajudar a disseminar as boas informações e educar aqueles que estão fora do caminho. Se afaste de quem se recusa a acreditar e de quem se torna um risco para a sociedade, e proteja aqueles que ama. Apoie o SUS e use máscara! Quero pedir à população que tenha empatia com aqueles que tanto se dedicaram e se dedicam ao combate desse vírus e dessa pandemia. Somos humanos, somos filhos, irmãos, somos pais, mães e esposos. Estamos exaustos e ainda não paramos. Há quase dois anos seguimos com a cara e a coragem à frente dessa luta, mas fazemos isso por vocês e pelos nossos também, com muito amor. Dedico aqui toda honra e respeito àqueles que se foram bravamente lutando, e àqueles que ficaram e nunca desistiram. Dedico aos meus colegas de profissão e a todos da linha de frente. Vocês são os verdadeiros heróis. Vocês são a história”, ressalta.
O Jornal do Sudoeste agradece, por meio desses dois médicos que tanto vêm trabalhando, a dedicação de cada profissional de saúde que esteve à frente dos atendimentos relacionados ao Covid-19.