ELE por ELE

MARCIO CINTRA

Por: Reynaldo Formaggio | Categoria: Cultura | 20-02-2022 07:48 | 1405
Marcio José Cintra
Marcio José Cintra Foto: Acervo pessoal

O ano era 1922. O mundo começava a dar sinais de recuperação pós Primeira Guerra. O Brasil organizava os preparativos para celebrar os 100 anos de sua independência. São Sebastião do Paraíso havia recém completado o primeiro centenário de sua história e, não muito distante da cidade, um grupo de artistas participava de um evento que mudaria os rumos culturais do país. Na capital paulista, o Theatro Municipal foi palco, entre os dias 13 e 17 de fevereiro, para nomes como Anita Malfatti, Di Cavalcanti, Victor Brecheret, Oswald de Andrade, Heitor Villa-Lobos entre outros, ressignificarem as artes, rompendo com os padrões estéticos vigentes e valorizando nossa brasilidade. A crítica foi implacável e poucos entenderam o movimento que dava início ao modernismo brasileiro. Para falar sobre a Semana de 22 e outros temas ligados ao fazer artístico, o JS convida um talento de nossa região cujo trabalho também está impregnado de brasilidade. Aos 56 anos, Marcio José Cintra, com profundas raízes ligadas à Jacuí, é um misto de inspiração e dedicação. Sua arte, opiniões e vivências o leitor confere na entrevista especial dessa semana.

Marcio, embora tendo crescido na capital paulista você tem fortes ligações com o interior. Suas raízes estão muito presentes em sua obra, certo? O que você e sua arte têm do paulistano e do mineiro?
Eu nasci em Furnas, filho de Joaquim Cintra e Luzia Maria Cintra. Tenho dois irmãos. Minha família foi para São Paulo quando eu tinha seis anos. Cresci com todas as influências que uma grande metrópole exerce sobre um indivíduo e, claro, isso tem um peso grande na minha personalidade. Ao mesmo tempo, nunca deixei de “ser mineiro”. Quando retornei para Minas, foi uma readaptação natural, uma retomada direta das minhas raízes. Então eu tenho em mim o lado metropolitano e o rural de uma cidade como Jacuí, onde vivo hoje.

Como a arte entrou na sua vida? Você se lembra da primeira pintura que viu ou do primeiro contato com a tinta e os pincéis?
Eu fui uma criança muito ligada ao desenho, acredito que devido às histórias em quadrinhos que eu e meus irmãos colecionávamos. Vivia criando minhas próprias hqs e super-heróis. A partir disso, tudo que era relativo à arte me chamava a atenção. A primeira pintura que me despertou real interesse foi na escola, quando vi em um livro uma reprodução da Aula de Anatomia do Dr. Tulp de Rembrandt. Eu fiquei fascinado com aquele realismo, as expressões, a luz. Eu acho que tinha uns onze ou doze anos.

Paralelo à arte você atua como professor na rede pública. Acha que sua formação o ajuda no exercício de sua arte?
Sim, eu sou professor efetivo na rede estadual, hoje somente de História, mas já lecionei Filosofia também. A formação em História e o conhecimento de Filosofia ajudam muito na forma de pensar a arte, principalmente quando você quer desenvolver um trabalho cen-trado nas raízes populares, como é o caso da minha série sobre o congado. Fiz uma outra série que envolvia questões psicológicas, sobre devaneios e introspecções e nisso a filosofia ajudou bastante. E, claro, eu leio muito, conheço bem História da Arte, o que é fundamental para um artista ter um trabalho autoral com personalidade.

Sua vinda para o interior foi determinante para mergulhar de vez nas artes plásticas? Acha que isso seria possível vivendo em São Paulo?
Totalmente! Durante todo o tempo que vivi em São Paulo, eu apenas gostava e era atraído por tudo que envolvesse arte e desenhava esporadicamente. Só comecei realmente a pintar quando voltei para Minas. Em uma cidade tão pequena como Jacuí, uma pessoa que vem de São Paulo fica com tempo ocioso e a pintura me veio como uma forma de lidar com essa ociosidade. Então eu comecei do zero, sem qualquer conhecimento de técnicas ou de material. A única certeza que eu tinha era que queria fazer um trabalho autoral.

Você é um autodidata? Teve influência de outros artistas? Como chegou à técnica tão especial que apreciamos em suas obras?
Sou autodidata sim. Como eu disse, comecei do zero, copiando pinturas de livros de arte principalmente. Como todo artista de qualquer área, eu tenho influências sim. Desde o começo, por causa do Rembrandt, eu fiquei fascinado com a pintura holandesa dos séculos XVI e XVII, além dele, Frans Hals, Vermeer, Jan Steen, van Ruisdael, entre outros. Aos poucos fui estudando e descobrindo artistas como Edouard Manet, Paul Cézanne, Paul Gauguin e Egon Schiele. Mas se eu for citar todos, dá uma lista imensa (risos). Sobre minha técnica, além da influência de todos esses mestres, eu fui desenvolvendo conforme mudava de estilo. A princípio eu tinha um estilo bastante clássico e limpo. Quando passei a buscar um estilo mais contemporâneo, passei a usar métodos variados de aplicar a tinta na tela. Então eu penso que criei uma identidade artística bem definida e bastante pessoal.

A Semana de Arte Moderna de 22 completa 100 anos de sua realização. Em sua opinião, qual a importância desse movimento e no que ele reverbera nos dias atuais?
A importância da Semana de Arte Moderna é imensa. Ela rompeu com os padrões acadêmicos que dominavam as artes, abriu portas para praticamente tudo que viria depois, seja na pintura, escultura, música, literatura. A ideia de criar uma arte tipicamente brasileira foi revolucionária, movimentos posteriores como o Tropicalismo, o Cinema Novo entre outros, devem muito à Semana de 22. Os modernistas continuam sendo referência fundamental para a arte como um todo no país.

Você acha que a arte se democratizou? Aonde o artista e a arte devem chegar e com quais propósitos?
Sem dúvida. O que se percebe hoje, é o reconhecimento de artistas vindos das periferias, o grafite é talvez hoje a forma de arte mais popular, porque independe de museus ou galerias para ser vista e apreciada. Artistas como Eduardo Kobra, Os Gêmeos e Crânio, são conhecidos internacionalmente. E a internet, claro, é um canal infinito de acesso às artes. Creio que artista e arte devem chegar ao público de forma instigante, mexer com a emoção, provocar reações. A arte que não chega a esse propósito ficou devendo alguma coisa.

Sua série “Ritmo, Cores e Fé do Congado Mineiro” o levou a diversos lugares com excelente aceitação. Já são quantas obras dessa série? E como se deu a inspiração para este trabalho?
No total foram 23 telas, a maioria de grandes dimensões, a maior mede 1,70 m x 2,0 m. Logo que iniciei a série, as duas primeiras telas foram selecionadas para o Salão de Outono da América Latina e expostas no Memorial da América Latina em São Paulo. Em 2018, expus no Circuito da Liberdade em Belo Horizonte durante o Centenário da Abolição, foi uma exposição importante que repercutiu de forma bem positiva na mídia. Logo depois a série foi mostrada durante uma semana no programa Encontro com Fátima Bernardes na Rede Globo. E teve a exposição aqui em Paraíso, que teve um público muito grande e me deixou muito feliz também. Quanto à inspiração, desde o começo, eu queria desenvolver um trabalho autoral e que tivesse uma identificação com as raízes mineiras e isso leva diretamente ao congado. Levou um tempo para encontrar uma forma ideal para isso, mas as repercussões não deixam dúvida que consegui chegar a um resultado bem satisfatório.

Além de inúmeras exposições e salões, sua arte já ilustrou livro e um de seus trabalhos foi selecionado para ser o cartaz de uma das mais importantes festas brasileiras. Qual a emoção de entrar para uma seleta galeria de artistas que tiveram o privilégio de terem sua obra selecionada para a Festa do Peão de Barre-tos?
Ter obras minhas ilustrando o seu livro “Sudoeste, Contos e Encantos das Geraes” é uma honra, me deixou muito feliz. E em 2018, fui surpreendido com o convite para criar uma obra para o cartaz oficial da Festa do Peão de Barretos. É uma tradição que começou com Oscar Niemeyer e tem na galeria artistas como Romero Brito, Amilcar de Castro, Ziraldo, Tomie Ohtake, Hans Donner, Siron Franco, Manabu Mabe, Fernando Naviskas, Claudio Tozzi... Ter uma obra e meu nome nessa galeria é algo que nem de longe eu poderia sonhar quando comecei a pintar na garagem de casa. Uma honra imensa.

Marcio, na sua opinião qual a importância da cultura para a sociedade?
Cultura é o que forma a identidade de uma sociedade, de um povo. Não é possível estabelecer uma sociedade sem seus traços culturais, língua, tradições, crenças e arte. É como essa sociedade será identificada e reconhecida perante as demais.

Sua esposa também trabalha com a beleza embora sob outro aspecto, já que a mesma é tão subjetiva. Como é esta parceria com uma missóloga? E pra você, o que é o belo?
Minha esposa e amor da minha vida, Rose Gracio, é uma das maiores conhecedoras de concursos de beleza do país. Ela não se considera missóloga, mas sim coach de misses. A atual Miss São Paulo Bianca Dias Lopes, por exemplo, foi preparada por ela. Foi graças a ela que eu abri meus horizontes na arte. E ela já foi modelo de algumas telas minhas. Belo pra mim é o que desperta o que há de melhor em cada um, venha de onde vier. Enquanto houver coisas que têm essa capacidade, dá pra acreditar na humanidade.

Marcio, sua arte já tem grande reconhecimento. Onde você ainda pretende chegar? E qual legado gostaria de deixar?
Eu pretendo chegar no topo, levar meu trabalho para o maior número de pessoas, inclusive fora do Brasil. Quem sabe ter uma obra em um museu. Sonhos né? O legado que eu gostaria de deixar é minha arte, ela parte de mim, é uma parte de mim.