A canetada do Toffoli
O Ministro Dias Toffoli primeiro anulou a delação premiada e depois as consequências dela: a instauração do processo criminal contra Marcelo Odebrecht e seu respectivo séquito, o recebimento da denúncia, os acordos de leniência. Por fim, mandou devolver dinheiro apreendido daquela empreiteira envolvida nos escândalos da Lava Jato.
Quem me acompanha sabe o que penso da Operação Lava Jato e todas as outras megaopera-ções policialescas, encabeçadas por quem quer que seja, independente de credo político ou ideologia, momento histórico ou opinião pública. São eventos espetaculosos sem absolutamente nenhum proveito para a persecução criminal e o que ela visa como um todo: a pacificação social. Muito antes pelo contrário, são procedimentos escandalosos que angariam ódios e amores através do estardalhaço junto à opinião pública. Constroem heróis e vilões que pouco a pouco vão mudando de lugar conforme o sabor das influências, digitais ou não, e dado o vertiginoso revisionismo histórico que atravessamos no Brasil e no mundo.
No geral, estas operações gastam mais dinheiro do que recuperam, incensam ídolos de pé de barro, ocupam manchetes de portais de notícias e alimentam pautas de comentaristas políticos e youtubbers, tiram policiais das ruas para criar factoides e tirar político da cama, de pijama, seis horas da manhã. Políticos que depois estarão de volta elegíveis e eleitos.
O acessório que segue o principal
O problema não é a Operação Lava Jato. O problema é o revisionismo histórico e os ires e vires ideológicos e políticos influenciarem as decisões de juízes e tribunais, algo que nunca antes se vira por aqui.
Mas vamos entender primeiro os motivos da decisão de Toffoli e do retrocesso na situação processual do clã Odebrecht e de suas empresas. Ou melhor, vamos relembrar.
Após assinar a um acordo de delação premiada, Marcelo Odebrecht autorizou a obtenção de provas de seus desvios financeiros e atos corruptos em um Banco Suíço. Era parte do acordo. Também com base nisso, assinou um acordo de “leniência”, para que sua empresa fosse poupada e pudesse continuar funcionando – para isso, além da delação, teria que pagar polpuda indenização a título de ressarcimento aos cofres públicos.
O problema para o prosseguimento do processo, com seus percalços já mencionados, é que o Ministro Toffoli verificou que a diligência de apreensão de provas, na Suíça, não foi acompanhada pela defesa de Odebrecht, para ele inaceitável, gerador de nulidade absoluta. Por isso, anulou todas as consequências do ato, desde o indiciamento, desconsiderou a prova para ele ilícita e os frutos dela gerados também, dentre estes o acordo de leniência.
Por isso mandou restituir a grana de Marcelo Odebrecht, porque nenhuma consequência poderia advir da obtenção de provas ilícitas, no entendimento de Toffoli. Aqui se aplicam duas regras, dois princípios, do Direito: a teoria dos frutos da árvore envenenada, ou “fruits of poisoned tree” é um deles. O outro é o do acessório que segue o principal, sempre.
Veneno ou remédio?
Se obtenho uma decisão liminar que acolha provisoriamente a minha pretensão, a vontade que busco satisfazer judicialmente, esta decisão – temporária e acessória que é – depende da resolução do pedido principal, do mérito da ação. Se esta última não me contemplar, esvaem-se as tutelas provisórias (e acessórias) anteriormente concedidas.
Se sou fiador de uma dívida, esta obrigação acessória cessa se a justiça desconsiderar a obrigação do devedor principal. O acessório sempre segue o principal. Se Toffoli entendeu que a obtenção de documentos era nula porque realizada sem advogado da defesa de corpo presente, tudo o que dela decorra (porque acessório) será nulo.
E os frutos da árvore envenenada? São as provas ilícitas por derivação. A leniência e a delação da Odebrecht, em si, podem não possuir nenhuma nulidade a ser diagnosticada, mas derivam ambas da desobediência (para Toffoli) do princípio da ampla defesa, durante a realização daquela mal fadada diligência na Suíça.
Mas...
Se Toffoli anulou a diligência, declarou-a absolutamente imprestável, não há como seus derivados surtirem qualquer efeito, e aí o trancamento da ação penal, o não indiciamento dos réus e a devolução de valores ressarcidos pela Odebrecht são consequências lógicas e jurídicas daquela anulação – por tudo que falamos aqui.
Ou seja, anulação certa, desfazer o que proveio do ato nulo é consequência jurídica norma-líssima.
O que se questionou, com bastante fundamento, aqui e em outros espaços mais nobres, e lá atrás, foi a decisão de Toffoli que descon-side-rou a diligência suíça. Por que? Você se lembra?
Vamos lá: a) o procurador da justiça suíço acompanhou a diligência; b) um procurador da República também acompanhou; d) Marcelo Odebrecht pessoalmente autorizou a extradição dos documentos; e) os procuradores de ambos os países disseram, na época, ser desimportante a presença da defesa na diligência; f) A defesa dos Odebrecht, do Brasil, não se opôs à diligência; g) Marcelo era delator premiado, o que o iguala no processo à uma testemunha, perdendo processualmente o direito de resistir à acusação – dela se torna aliado quando faz acordo de colaboração premiada; h) (e finalmente) a diligência ocorreu durante o inquérito, e não na ação penal, e até então era desnecessária a presença da defesa em atos de mera colheita de elementos de convicção – não havia prova judicializada, contraditório, defesa plena, até então.
É isso tudo. Logo se vê: se o que está errado é desfeito, desfazendo-se tudo no seu rastro, quando a decisão lá atrás é questionável, seus acessórios causam barulho, reboliço e críticas. Foi o que aconteceu.
Aécio e a JBF
As coisas são muito estranhas no mundo das provas do Direito Penal. Marcelo Odebrecht confessar corrupção ativa e devolver dinheiro tomado dos cofres públicos pode não ter valor algum se não for seguida alguma tecnicalidade, como vimos com a canetada do Ministro Toffoli.
Por outro lado, Aécio Neves pedir dinheiro a Joesley Batista, da JBF, para quitar dívidas de campanha, é considerado prova incontestável de desonestidade. Ainda que fosse doação (notem bem), não estamos falando de dinheiro em troca do que quer que seja – a princípio. Pode ser considerado imoral o pedido de Aécio ao gestor mais proeminente da JBF, não discuto isso, só amplio o contexto para discussão: empresários doando dinheiro para políticos antes ou depois das eleições, oficialmente ou como Caixa 2, jamais pode ser incondicional prova de desonestidade, sem defesa ou chance de contraponto.
Joesley também agiu contra Michel Temer. Ele foi o homem do grampo para o PT e gravou clandestinamente sua conversa com Temer, quando prometeu verbalmente ajuda financeira a parlamentares presos contando com a condescendência do então Presidente da República.
Tudo prova inconteste de culpa, segundo opinião quase unânime. Delação, confissão e leniência premiadas, com devolução de dinheiro, por Marcelo Odebrecht, não.
Viram como as provas são relativas no mundo do Direito?
O Complô que não houve
Mais uma megaoperação da Polícia Federal, para variar contra Jair Bolsonaro, entrega para a opinião pública o fato de que o então presidente conversou com seu alto escalão sobre a possibilidade de um “Plano B” para impedir o que já então dizia ser a inevitável vitória da esquerda nas eleições presidenciais próximas passadas. Estamos falando de uma reunião em meados de 2022, praticamente na pré-campanha de Bolsonaro à uma frustrada reeleição.
Nunca diminuí aqui os inúmeros erros de Jair Bolsonaro à frente da nação. Não soube enfrentar a oposição como deveria, com pão ou pau, como dizia meu finado amigo, o Deputado e Prefeito Araceli de Paula. Quis ficar no meio do caminho, dando brioches, e acabou como Maria Antonieta da França.
Foi péssimo gestor da pandemia, onde poderia ter angariado uma quase unanimidade nacional entre os indecisos, que decidiram a eleição – o trocadilho é inevitável. Autêntico demais para a vida pública, foi muito mal interpretado, e não soube conviver bem com os outros poderes da República. Mas sempre foi um homem bem intencionado, quase deu a vida pelo país e dará sua liberdade pela pátria, dentro em breve. O tanto que suportou governar foi muito atrapalhado por terceiros, mas manteve a economia em ordem e a segurança pública melhorou muito durante seus quatro anos no poder.
Li os trechos “comprometedores” de sua reunião com o alto escalão militar que, então, compunha seu séquito de notáveis. Eis aqui mais um erro do bom capitão: militares demais no poder. Nada contra o povo da caserna, sou militar da reserva do Exército Brasileiro com muito orgulho, mas qualquer governo que se preza, hoje, tem que ser mais plural, com representantes de vários nichos sociais. Bolsonaro não tinha um Ministério, tinha um Estado Maior.
Voltando aos documentos e à prosa encontrados contra ele durante a megaoperação da PF, o que vi foi ele reclamando e pedindo pronunciamentos, questionando urnas eletrônicas e exigindo unidade de discursos entre todos do seu Ministério. Vi também, já agora no Inquérito, o Ministro Alexandre de Moraes, o eterno magistrado competente para julgar Bolsonaro, já afirmando no despacho do inquérito a inegável culpa do ex-presidente que ainda não foi julgado e sequer denunciado. E também vi Moraes selecionando textos deste mesmo inquérito, todo em segredo de justiça até então, textos que considerou mais palatáveis e possíveis de passar à população. Enquanto isso, também vi advogados reclamarem naqueles mesmos autos de não poder intermediar contato entre clientes, dado o sigilo da apuração em andamento.
Ou só eu que vi isso?
Gravando reuniões
Lembram de outra reunião de Bolsonaro, que Sérgio Moro tornou pública, em que ele, Weintraub e outros, falavam mal dos membros do STF? Estava gravada, como essa. Nunca entendi, e sempre indaguei aqui, o porquê do criminoso filmar o próprio crime – se é que é crime. O bom capitão não seria tão neófito, escoteiro e tolo para fazer isso.
E não é e nem foi.
Gravou para mostrar para a posteridade que não cometia crimes – o que de fato sempre considerou ser a inegável realidade. De outro modo, não teria gravado. As gravações, no entanto, agora se tornaram elementos de convicção contra ele.
De novo a subjetividade da prova.
O dito pelo não dito
“Há uma espécie de conforto na autocondenação. Quando nos condenamos, pensamos que ninguém mais tem o direito de o fazer” (Oscar Wilde, escritor irlandês).
RENATO ZUPO – Magistrado, é Juiz de Direito na Comarca de Araxá, Escritor