Impeachment de Lula
Teria muita graça, seria ridículo e impossível, o impedimento de Luís Inácio Lula da Silva por falar besteira em um discurso. De longa data nosso atual presidente eleito (?) costuma mesmerizar quando abre a boca para falar de improviso – algo que homens públicos não devem nunca fazer, a não ser quando se tratem de discursos profissionalíssimos, frios e sérios. Ou seja, não é novidade alguma o besteirol que vez ou outra porventura saia da boca do nosso dignatário máximo da nação. E não podemos reclamar, ao menos seus eleitores não podem. Afinal, o puseram lá bastante sabedores desta tendência de Luís Inácio de falar de improviso, sem pensar, por vezes cometendo gafes.
Outro motivo para se descrer em impedimento (impeachment) do presidente Lula é o fato de que não ouso supor que um mandatário que já foi preso e condenado (depois descondenado), acusado de corrupção, envolto em escândalos, com tentáculos por diversas operações não tão sigilosas assim em busca de empreiteiros e empresários lavando dinheiro sujo, com patrimônio investigado e questionável… Enfim, com tanta tranqueira ao seu redor, inviável crer que caia nocauteado no ringue da política somente por um discurso inconveniente.
Al Capone
O que querem fazer com Lula, que estão fazendo com Bolsonaro, me faz lembrar o gângster mafioso ítalo americano Al Capone, durante a Lei Seca nos Estados Unidos, mais precisamente em Chicago, nos anos 1930. Capone ganhava muito dinheiro vendendo bebida nos EUA, em uma época em que o álcool era proibido e seu uso e venda coibidos severamente, como se fosse cocaína hoje em dia.
E matava devedores, desafetos, testemunhas de seus negócios ilícitos! Tanto que ninguém o delatava. Quem pudesse prejudicá-lo era sumariamente eliminado. O FBI, então recém criado penava para encontrar provas para colocar Capone na cadeia, não conseguia prendê-lo, e havia muitos juízes e policiais na folha de pagamento daquele famoso mafioso.
Qual foi a solução empregada pelo FBI? Uma gambiarra do bem. Prenderam Capone por sonegação de tributos, desbaratando sua quadrilha. Ah! E revogaram a Lei Seca. O mafioso morreu na prisão, por um crime menor, muitissimamente menor, do que aqueles muitos outros dos quais era acusado e cujas provas para condená-lo não apareciam ou eram “eliminadas” no velho estilo do crime organizado.
Talvez queiram “caponizar” (neologismo que acabei de inventar) Lula e Bolsonaro por um bem maior. Com o capitão já tentaram de todo jeito: loja de chocolates do filho, joias da Michele, Marielle, baleia… Lula que se prepare.
O Holocausto
Lula comparou o suposto extermínio de árabes em Gaza, por Israel, ao holocausto nazista. Este último foi um expurgo desumano comandado por Hitler e que liquidou milhões de judeus, inclusive em campos de concentração degradantes, durante a Segunda Guerra Mundial.
Ele pecou nas duas frentes, minimizando o sofrimento do povo judeu e comparando a atual conduta de Israel, o país judeu por excelência, àquela de seu terrível algoz histórico, Adolf Hitler. Diminuiu o holocausto, minorou seu alcance e espectro, ao compará-lo a uma guerra como a de Gaza que, justificável ou não, tem gente armada dos dois lados. O extermínio de judeus na Segunda Guerra foi uma tragédia humanitária sem precedentes históricos conhecidos e nada semelhante a isto ocorreu após o término daquele cruento conflito.
Fez pior o presidente Lula. Comparou os líderes judeus aos nazistas, antes de tudo uma inconsistência histórica. Eventual discórdia entre judeus e árabes muçulmanos envolvendo os territórios ocupados da Palestina não possui a conotação racista utilizada por Hitler para perseguir e exterminar judeus, e as verdadeiras vítimas do racismo, hoje e sempre, sempre foram os judeus – e lembremos que há judeus de todas as raças, no mundo todo. São alguns povos árabes que dedicam ódio racial aos judeus e não o inverso.
O Caso Daniel Alves
O caso todos já sabem. Daniel Alves foi a uma boate em Barcelona, onde reside. Lá cercou uma jovem na porta do banheiro feminino, onde mantiveram relações sexuais. Daniel foi embora, mas a segurança da boate acolheu a moça, já então aos prantos, e a polícia buscou e prendeu o ídolo brasileiro diante da acusação formalizada pela vítima: estupro.
Daniel Alves é casado com uma modelo internacional lindíssima, rico, bem apessoado, ídolo do esporte e garoto propaganda de diversas marcas famosas. É claro que o caso alcançou repercussão mundial. A vítima permanece com identidade na penumbra e recusou ser indenizada através da equipe de advogados do jogador para calar-se ou retirar as graves acusações que formalizou.
Legislação protetiva
A Espanha é precursora na legislação que protege mulheres da violência sexual e doméstica. Nossa Lei Maria da Penha foi inspirada nas disposições legais espanholas e as medidas protetivas daqui são semelhantes às adotadas naquele lindo país ibérico. Pela legislação protetiva de gênero ser por lá mais antiga, as medidas e sanções são mais rigorosas que aquelas implementadas no Brasil.
A proteção de gênero para mulheres é muito bem vinda no Brasil e no mundo, porque nossa cultura ainda demanda cuidados quanto ao tratamento dedicado às mulheres, que votam, trabalham, têm liberdade, mas ainda são tratadas como subespécies sem autonomia e intelecto por muito marido abusador, ainda são discriminadas no ambiente de trabalho por muito patrão chauvinista, também continuam a ser assediadas por muito colega cafajeste e machista.
E continuam a ser estupradas, infelizmente. E a maioria dos estupros é “amigo”, acredite, e não se assuste com o termo. É que a violência sexual de gênero, contra mulher, é preponderantemente praticada no dia a dia não por um desconhecido, mas por parentes, vizinhos, colegas de trabalho, ou por gente recém conhecida, bem apessoada, em bares e boates. As vezes até por um namorado, a quem a vítima disse “não”, mas a negativa é desrespeitada. Ou ocorre quando a vítima, ébria, bêbada, dopada, não tem consciência suficiente para consentir. Aqui no Brasil é assim. Na Espanha também, mas o tratamento das questões de gênero lá é mais rigoroso. Problema sério para Daniel Alves e seus advogados.
Uso e abuso
Daniel Alves (casado, rico, boa pinta, ídolo) não deveria estar onde estava, com quem estava, e fazer o que fez. Ponto final. Já sofreu condenação midiática, social e familiar para o resto da vida. Cometeu cinco minutos de bobeira que haverão de lhe custar muita grana, sua morte social e o casamento em vigor. Perdeu visibilidade, dinheiro, patrocínios, admiradores e fãs. E está perdendo sua liberdade por um bom tempo.
Merece sofrer sanções, não somente morais e sociais, mas também jurídicas pelos seus atos. Mas de fato estuprou a vítima no caso da boate em Barcelona?
A definição do crime de estupro perante a legislação brasileira é bastante semelhante à tipificação espanhola: pratica estupro quem obriga (constrange) outra pessoa à prática de atos libidinosos, não somente a conjunção carnal, que é a relação sexual standard, pênis – vagina. A chave para entender a amplitude da definição legal do crime, o que chamamos de tipificação, é o constrangimento, como diz a lei. Constrangendo, estou obrigando alguém a praticar algo, no caso no contexto sexual, ou obrigando a pessoa a permitir que com ela se faça ato libidinoso.
Quando não há esta imposição forçada à ação ou omissão em contexto sexual, podemos estar diante de outro crime menor, importunação sexual, assédio, mas não se tratará de estupro. Pode até não haver crime algum, por exemplo, em uma cantada grosseira, em um esbarro ou no “roubo” de um beijo. Definir a todo crime sexual como estupro é um erro, é um abuso do princípio da reserva legal, que delimita o crime à objetiva definição legal da conduta.
O crime sexual dependerá sempre da ausência da vontade da vítima em praticar o ato libidinoso. E a vítima deve estar em condições psíquicas de decidir. Com a mulher bastante embriagada, dizem os juristas, não há essa vontade e esse discernimento, e portanto sexo que se faça com uma mulher muito bêbada sempre será estupro.
É este o caso com Daniel Alves. Só que Daniel também estava embriagado – o que na Espanha é uma atenuante. Outro pormenor interessante: como saber quando a parceira está embriagada demais para consentir? Será que Daniel Alves, também bêbado, sabia da condição ébria da vítima? Daqui a pouco, solteiros do mundo todo deverão andar com bafômetros portáteis nos bolsos para medir a alcoolemia dos seus alvos noturnos. Serão itens de cesta básica nas noitadas, tal como ocorre com os preservativos.
O Inquérito de Roma
A PGR pediu o arquivamento do inquérito que apura atos antidemocráticos supostamente perpetrados por uma família de brasileiros, no aeroporto de Roma, quando teriam insultado ao Ministro Alexandre de Moraes e ao filho deste. Segundo a Procuradoria da República, não há indícios de ação terrorista, de organização criminosa ou de prática de atos antidemocráticos que prejudiquem o funcionamento das instituições na ação dos investigados que xingaram ao magistrado no Aeroporto de Fiumicino, na capital italiana.
Que brilhante conclusão! Foram necessários, sem dúvida, meses de investigação, carradas de esforços e dinheiro, para se dissecar e investigar crime tão grave. Nesta trajetória tão aventuresca, buscas e apreensões, grampos e quebra de sigilos fiscais e bancários, tudo para “apurar” ao nefando ato de se xingar a uma autoridade em um aeroporto internacional.
A polícia e o Poder Judiciário devem servir ao povo e interessa ao povo a apuração de crimes. Nas investigações, pode surgir a necessidade de prender e colher provas, quebrar sigilos telefônicos, fiscais, bancários, instalar escutas, buscar e apreender documentos em domicílios e sedes e filiais de empresas. Tudo com o fim de desvendar delitos e descobrir seus autores.
Quando já se sabe de antemão os autores do delito, quando não há necessidade de provas, até porque confissão já existe, o cumprimento de medidas policialescas se reveste de arbitrariedade e visa intimidar e não instruir processos com provas. Até o Estadão, frio veículo de informação, se manifestou sobre os exageros envolvendo o desacato sofrido por Moraes em Roma e os desdobramentos desnecessários dali advindos.
Não se deve ofender a dignidade e o decoro de quem quer que seja, pouco importando se a vítima é um magistrado do STF ou um pedreiro. O que me assombra é que as ofensas ao Ministro Alexandre tenham tido resposta tão brusca e exagerada e se possa, neste mesmo contexto jurídico, ofender impunemente a um presidente da República sem que sequer se lavre a um boletim de ocorrência. Em suma, ofender Moraes não pode, é crime hediondo. Ofender Bolsonaro pode.
O Dito pelo não dito.
“Os maiores males infiltram-se na vida dos homens sob a ilusória aparência do bem”. (Erasmo de Rotterdam, filósofo holandês).
RENATO ZUPO, Magistrado, é Juiz de Direito na Comarca de Araxá, Palestrante, Escritor.