ENTRETANTO

Entretanto

Por: Renato Zupo | Categoria: Justiça | 06-04-2024 02:33 | 1373
Renato Zupo
Renato Zupo Foto: Arquivo

Sessenta anos atrás…
Na década de 1960 vivíamos o auge da guerra fria, quando o mundo estava separado em dois blocos políticos antagônicos: o comunismo da União Soviética e da China governava o leste europeu e a Ásia, além de focos esparsos na África e na América Central; e o capitalismo americano mandava no planeta a partir da Berlim dividida e por todo (ou quase todo) o ocidente.

Compreender isso é primordial para explicarmos a tomada do poder pelos militares em 1964, que “revolucionou” (sem trocadilhos) nossa recente história política, evento que recém completou sessenta aniversários. A cortina de ferro – como era chamada – que dividia duas ideologias polarizadas as tornava inimigas viscerais, e o lado de cá tinha medo de comunistas. Já para estes, o ocidente capitalista era um corrupto que prostituía mulheres no terceiro mundo e disseminava drogas e vícios ao redor do planeta.

Um lado queria exterminar o outro, trocando em miúdos. 

Golpe, contragolpe ou revolução?
O assunto 1964 é tão polêmico que, quando você vai começar a contar sua história, já esbarra na nomenclatura, e conforme escolha a terminologia fica desde logo rotulado como “esquerdista”, “fascista” ou “isentão” – tamanho o patrulhamento ideológico de hoje em dia.

O ponto fundamental aqui é ser técnico sem ser maçante. Recorro então à explicação daquele que fazia isso magistralmente, Olavo de Carvalho: em uma revolução, dizia o saudoso professor, não há só uma tomada do poder, mas uma mudança constitucional imposta, uma modificação da forma de governo impelida pela força das armas. A Revolução Francesa e a americana foram revoluções: repeliram a monarquia absolutista para autoproclamarem-se repúblicas. Assim também aqui, quando exilaram Dom Pedro II através de forças militares republicanas, na verdade urdidas por José Bonifácio de Andrada, tornando-nos finalmente república.

Portanto, o evento de 1964 não foi revolução. Foi golpe de estado? Somente seria possível se forçado por toda uma população contra um presidente acidentalmente no poder e exercendo um mandato para lá de acidentado João Goulart foi o pior presidente da nossa história política, de longe e disparado. Conseguia desagradar a todos os setores da sociedade, inclusive aos militares, que muito antes de intercederem para apeá-lo do poder, na verdade pararam de prestar-lhe apoio.

Sem os militares, João Goulart (o Jango) ficou desprotegido no Congresso Nacional, na imprensa e diante da opinião pública. Foi essa gente toda que insuflou às forças armadas a tomarem o poder, em um primeiro momento em nome de toda a nação. Depois no poder permaneceram, com medo da ameaça comunista – e aqui volto ao contexto da Guerra Fria, explicado acima.

Hoje para nós é incompreensível o temor de uma ditadura comunista no Brasil, imposta pelas armas. Mesmo na época isso seria impossível. Por isso, e por fim, aquela tomada do poder não foi jamais um “contragolpe”. Jango era um comunista disfarçado, mas sem força política alguma para modificar o funcionamento das instituições, do Estado, da economia. Mal se aguentava em pé quando foi deposto, e os movimentos armados de esquerda, que então já existiam, eram episódicos, esporádicos e compostos de gatos pingados. Todos inspirados pela revolução cubana de Fidel Castro. E todos inexoravel-mente fadados ao fracasso

O que deu errado?
Ou melhor, o que deu certo a partir de 1964? Tivemos nosso apogeu econômico no começo dos anos 1970, vivemos um milagre impulsionado pelo expansionismo de obras, balança comercial, chegada de grandes indústrias vitaminadas pelo capital norte americano. Os Estados Unidos precisavam financiar o governo militar, e o fizeram magistralmente, mas nossos presidentes militares também deram conta do recado, escolhendo bons gabinetes e gestores que, sem qualquer controle de gastos financeiros, sem Ministério Público fiscalizando e sem leis impondo regras orçamentárias, protegeram o capital privado. Para isso, esvaziaram os cofres públicos e nos tornaram dependentes de empréstimos internacionais – só conseguimos cortar parcialmente esse cordão umbilical bancário nos anos FHC.

Segurança pública naquela época – que eu vivi criança e adolescente – era prioridade. Vivia-se não só tranquilo, mas muito mais tranquilo, se é que me entendem. Se você não pertencesse a alguma minoria, não compusesse células de esquerda armada e não fizesse oposição declarada ao governo, podia dormir com portas e janelas abertas em cidades pequenas e andar de carro com o vidro da janela aberta e o braço pra fora com relógio caro no bolso. Mulher andava com bolsa solta pelas ruas dos centros das grandes cidades e assalto à mão armada, quando havia, era reprimido de uma maneira questionável, mas eficaz: sumiam com os assaltantes.

A nossa educação era muito melhor do que hoje. Havia pouco dinheiro – mas professor sempre foi muito mal pago. Mas eram bem formados, e formavam bem. Alunos eram reprovados e obrigados a “repetir ano”. Mestres em sala de aula tinham o poder de pais e pais não enchiam o saco da escola quando seus filhos eram admoestados, suspensos ou reprovados. Qualquer aluno que concluísse o ensino médio em escola pública da época daria (e dá) banho em bacharel de curso superior de hoje em dia.

E havia ensino cívico: entenda isso bem. Uma coisa é militarizar alunos do ensino médio, o que para muitos é um erro e admito como uma tese viável até certo ponto. Outra coisa é não ensinar História, não valorizar os grandes vultos de nosso passado e tampouco ensinar o hino nacional, o significado da bandeira e inserir um pouco de orgulho patriótico que todo jovem deve ter e é indispensável para sua formação. Naquela época havia disso tudo e era muito bom.

Uma pedra no meio do caminho
Tanta coisa boa não acontece sozinha no mundo real. Toda rosa tem espinhos, e os espinhos do regime militar eram pontiagudos, profusos, perigosos. Os militares, até certo ponto, gostaram do poder e o que era para ser um evento isolado que logo restituiria a ordem constitucional acabou durando vinte anos.

Saber os motivos dessa demora na devolução do poder democrático ao povo tem tomado conta dos cérebros de historiadores e cientistas políticos ao longo de décadas, entusiasmado conversas de bar, arregimentado blogueiros, políticos, escritores, sempre em torno do tema. E não é que dessa discussão profícua não exista uma conclusão até aqui. Há várias, na verdade.

Os militares gostaram do poder e tinham receio de devolver o controle institucional aos políticos civis, porque sentiam que a sociedade poderia ser contaminada pela ameaça política do comunismo – essa era a versão oficial. Tinham também o receio do revisionismo histórico, de se transformarem de heróis em vilões, o que acabou ocorrendo quando os relatos de presos políticos torturados, desaparecidos e mortos, tomou as redações dos jornais e as ruas. Seria inexorável. A tortura, desumana e degradante, construiu ídolos dentre suas vítimas, alguns deles depois entronizados líderes políticos. Sem a tortura, teriam se perdido no esquecimento popular.

O regime desnecessário
Toda supressão de direitos políticos é degradante para uma nação. Se o golpe era justificável em algum ponto dado o desgoverno de Jango e sua intensa repulsa social, os anos que a ele se seguiram, sob o domínio militar, foram – em um simples adjetivo que os definem – desnecessários. Não importa o que se tenha lido ou ouvido falar, não havia necessidade de tantos anos de “chumbo”, como se convencionou chamar. O AI-5, em 1968, foi a “cereja do bolo”, consagrando esta desnecessidade, muito embora Jarbas Passarinho, então ministro de Estado, o tenha defendido até recentemente como remédio amargo e necessário para uma doença política grave: a esquerda armada e a ameaça do comunismo. A primeira era insípida em termos nacionais, a segunda inexistente.

Ouvi do meu comandante, enquanto militar que fui e de certa maneira ainda sou, em uma palestra: o Brasil jamais seria comunista durante aquele período, então em seus estertores. Somos religiosos, adoramos consumir, defendemos a economia de mercado, gostamos de liberdade. E éramos bem mais ainda naquela época.

Mesmo assim, o regime militar, e a repressão que a ele se seguiu enquanto durou o período de exceção, foi um divisor de águas que merece ser estudado e não tem porquê ser esquecido. Para muitos, o golpe deveria ser comemorado. Não chego a tanto. Foi importante, sim: é inegável que demonstrou nossa aptidão para a liberdade ideológica e política, nossa resistência contra radicais armados, a possibilidade de fazer ressurgir das ruínas políticas o fervor da liberdade. E é assim que deve ser lembrado.

Brasil fora da curva
O Brasil é único em diversos aspectos – é uma jabuticaba, que só existe por aqui. Fomos a única colônia (de Portugal) que também foi sede da metrópole quando Dom João VI transferiu para o Rio sua corte e governo fugidos de Napoleão. Nossa independência veio sem derramamento de sangue relevante, e assim também a revolução republicana.  Aliás, somos o único país das Américas que já foi monarquia. Lutamos duas guerras que vencemos, sem, no entanto, ganhar nada com isso: a do Paraguai e a Segunda Guerra Mundial.

O golpe militar também foi diferente de tudo, porque era querido por quase todos – outro ponto fora da curva. A ditadura que a ele se seguiu foi a única com alternância no poder, entre generais. Havia eleições indiretas, como sempre foi e até hoje é nos Estados Unidos. Nelas havia oposição e esquerda, e durante aqueles anos funcionavam tribunais militares que julgavam abusos da repressão. Foi único em mais um sentido: em vinte anos de chumbo fizemos cerca de quatro mil vítimas diretas documentadas, dentre desaparecidos, exilados, torturados e mortos. A ditadura Argentina matou mais de vinte mil em oito anos, no Chile liquidaram quase o dobro disso. Fidel exterminou duzentos mil cubanos e opositores do regime. Stalin matou milhões de compatriotas. Quando somos maus, somos menos piores.

O dito pelo não dito
As democracias liberais devem evitar a tentação de usar meios antiliberais, mesmo quando confrontadas com posicionamentos e opiniões abertamente hostis a elas. (...)Muitos desejam banir a fala daqueles que defendem ideias ´erradas´. Querem alcançar a igualdade racial por cota ou decreto. Querem usar o ensino e a arte para alcançar objetivos políticos em vez de educacionais e artísticos”. (Fareed Zakaria, jornalista americano, colunista do Washington Post e do Estadão) 

RENATO ZUPO – Magistrado, é Juiz de Direito na Comarca de Araxá, Escritor, Palestrante