Entenda o Twitter
O Ministro Alexandre de Moraes determinou a suspensão de conteúdos de diversas redes sociais de plataformas bigtechs, dentre as quais o Twitter – que mudou de nome depois disso. E Elon Musk, seu atual proprietário, meteu a boca no trombone para acusar a decisão de Moraes de absurda, própria de ditaduras, ameaçando fechar as portas da empresa no Brasil.
Foi Musk que falou, não eu
Impressiona bastante o fundamento de uma das decisões: o Twitter deveria controlar algoritmos que se referissem às críticas do funcionamento das urnas eletrônicas. Como se crítica fosse fato e opinião pessoal fosse mentira. O problema, eu já disse aqui, é conceitual. Opinião e crítica são subjetivas e não representam fatos. Fatos são pedaços da história, já o dizia o jurista Pontes de Miranda.
Se digo que o sol ilumina nosso planeta durante o dia, é um fato. Se digo que a luz solar é linda, é uma opinião. Estão censurando a beleza do sol. Na Turquia, é crime sequer mencionar o massacre que os turcos impuseram aos Armênios no início do século passado. Na Rússia de hoje seus jornalistas não podem falar que o país está em guerra com a Ucrânia – devem se referir àquelas bombas como “intervenção militar de caráter excepcional”, uma coisa assim. Sob pena de Putin mandar jornalistas para os campos de concentração gelados da Sibéria.
Por aqui, o pessoal que pediu intervenção militar após a eleição de Lula está sendo processado, alguns presos – novamente opinião, crítica, crime de pensamento. Por isso, jornalistas e políticos americanos começam a ver o Brasil como uma semidemocracia, como já o fazem com Rússia, Hungria e algumas republiquetas centro americanas.
Juiz redondo e quadrado
Tanto o Código Civil, quanto o marco regulador da internet, quanto o Código de Defesa do Consumidor, regulam eventuais exageros publicados e postados em sites e redes sociais. Não precisa de nenhum estardalhaço institucional para resolver isso, muito menos envolvendo a corte suprema de justiça no Brasil.
Desde 2002, pelo menos, exageros são punidos civilmente com indenizações. Mesmo antes, a Lei de Imprensa cuidava da matéria. O Código Penal também pune aos crimes contra a honra, inclusive os cometidos on line, bem mais frequentes de vinte anos para cá. O abuso de Direito, e de imagem, podem ser punidos civil e criminalmente da mesma forma.
O raciocínio, diante disso, é rasteiro: se temos lei para punir os abusos, não podemos censurar os usos. A pessoa que se comunica pelas redes tem nome, CPF, endereço, título de eleitor e conta bancária – que seja punida após o devido processo legal. A “censura prévia” é um banimento social do indivíduo neste mundo globalizado em que vivemos, e geralmente com ela vem bloqueio de contas bancárias, interceptações telefônicas e divulgações de trechos de inquéritos e processos que acabam com a reputação do “ofensor” que se suspeite integrar algum “gabinete do ódio” ou “milícia digital”.
Censura prévia equivale a condenação prévia, sem devido processo legal, sem respeito à amplitude do direito de defesa, sem contraditório válido – que é a igualdade de armas entre acusação e defesa.
É por isso, em outros termos, que Elon Musk critica o Poder Judiciário Brasileiro e, hoje, seu exponente mais midiático, o Ministro Alexandre de Moraes. Ocorre que Musk, para entender o funcionamento da justiça brasileira, deveria ler um livro antigo do jurista Vicente Rao, “O Direito e a vida dos direitos”: nele, o saudoso advogado vaticina que, no país, a lei é o que o juiz diz que ela é e que o juiz faz do redondo quadrado, caso assim entenda. Chama-se hermenêutica. Nome difícil para um poder quase divino e que, para muitos, encontra limitadores claros na Constituição Federal.
Bigtechs legislando?
Há uma diferença brutal entre aquilo que o juiz pode fazer e aquilo que ele deve fazer. Moraes pode, tecnicamente, determinar fechamento de empresas, bloqueio de contas e aplicativos de mensagens, pode tirar do ar satélites. Isto dentro de um processo válido, seguindo o contraditório e dando vez e voz à defesa do investigado.
Portanto, materialmente, a decisão de Alexandre de Moraes não está errada. Suas premissas, no entanto, podem estar. A lei civil, já antiga, admite o funcionamento de uma empresa de capital estrangeiro no país, desde que aqui possua uma filial registrada mediante as regras locais, com participação societária indireta de indivíduos nacionais. Isto faz com que a multinacional, seja Bigtech, seja uma importadora de produtos chineses, tenha que seguir as regras da legislação brasileira para que aqui realize parte de seus negócios.
Elon Musk e outros, certamente muito bem assessorados juridicamente, sabem disso. Sabem que Moraes pode mandar e desmandar, sendo ele o magistrado presidente do inquérito ou relator do processo das “milícias digitais”. A bronca deles é com os fundamentos dessa ordem.
Tesouras públicas e privadas
As plataformas digitais já possuem reguladores internos que muitos não gostam e consideram censura privada. Ou seja, dependendo daquilo que você postar, vai ser suspenso – e essa “tesoura”, às vezes leva em conta critérios políticos que, por si sós, embrulham o estômago de muitos liberais. Ir além disso para também admitir uma censura estatal vai de encontro ao “american way of life”, um dogma do país mais libertário do mundo, os Estados Unidos – onde tudo se pode, e o que não pode, dá cadeia. Mas as regras são claras. Por aqui, nem sempre.
Fundamental para um juiz é ter e manter serenidade. Ele tem que espalhar paz durante sua atuação e perante seus pares e jurisdicio-nados, as pessoas que dele receberão justiça. Magistrado não pode ser foco de conflito, não pode ser temido, virar um ogro que impõe terror. Os cidadãos devem ver no seu juiz um correto aplicador do Direito na medida das leis, com calma de ânimos, sem sangue no olho ou afeições e desafeições ideológicas e políticas a guiá-lo. Há algo de errado em uma República em que juízes estão, na prática, exilando jornalistas e homens e mulheres que lidam com comunicação digital, forçados pelo cabresto econômico e pelo garrote bancário ao desterro profissional em terras estrangeiras.
Ninguém pode ser tão grande
O Poder Judiciário que existe e pode regular a outros poderes, fechar e abrir empresas, prender e soltar, não pode ser superior à ordem constitucional – e é isso que criticam lá fora. E aqui dentro também. Quando um poder ofusca o outro e se blinda a ponto de não suportar ser criticado (que o diga Mauro Cid), aí é que a crítica vem mesmo. Toda pessoa ou instituição que se impõe pela força é desafiado por ela – a lição é antiquíssima.
Empresa alguma pode ser tão grande que apequene Estados soberanos– entendo, neste ponto, ao Ministro Alexandre de Moraes. A ideia, aliás, é de Louis Brandeis, dos mais famosos magistrados que a América já possuiu. Brandeis, de senador e político, jurista que era, foi catapultado a juiz da Suprema Corte dos EUA. Ainda enquanto congressista defendia que, em uma economia política em que o capital circulante deve ajudar a forjar o cidadão para o autogoverno ético, não se podiam admitir empresas tão ricas, grandes e poderosas, que superassem em poder à própria República. Por lá, é muito comum que juízes venham da vida política. Na Suprema Corte houve vários: Brandeis, que já falei, Felix Frankfurter, Hugo Black, dentre outros, brilhantes congressistas e depois magistrados irrepreensíveis que proferiram decisões imparciais, irretocáveis, orientando ao funcionamento da nação americana e do mundo.
Esta proveniência política de magistrados americanos funciona bem porque não há uma polarização ideológica sensível nas carreiras de origem dos futuros magistrados. Nos Estados Unidos isso é nítido. Como dizia o escritor Gore Vidal, por lá há dois grandes partidos: um de direita e outro de extrema direita. E na Europa Ocidental também. O político europeu é pragmático, vale dos seus resultados, desim-portando suas simpatias ideológicas.
Mais Moro
Enquanto mantemos esta nossa conversa as cortes eleitorais estão julgando a elegibilidade de Sérgio Moro, eleito senador pelo Paraná e que é acusado de abuso de poder econômico durante a campanha para o Senado. Não o estou defendendo e nem posso. O que se deve defender é o seu mandato, porque espelha a vontade popular – e isso sim é sagrado. Como juiz eleitoral que vez ou outra sou, sempre nutri sérias restrições a alteração da vontade do povo expressada no voto. É o povo que manda em uma república constitucional, pombas! A legislação eleitoral impõe regras meticulosas sobre a atuação de políticos no poder e durante a campanha, e com isso juízes acabam decidindo no lugar do povo quem é que merece, ou não, ser votado e eleito.
Se continuar essa caça às bruxas, se continuar essa dissecação da vida de candidatos e políticos, ou seja, e em português rasteiro, se continuar essa encheção de saco, daqui a pouco já não mais haverá gente boa querendo entrar na política – onde sempre se perdeu o sossego, mas agora se está perdendo o patrimônio, a paz e a liberdade, da maneira mais esdrúxula concebível: um recibo errado, um cabo eleitoral mais afoito, um dinheiro esquecido, um apoio de última hora não contabilizado porque o contador da campanha dormiu no ponto, detalhes banais assim destroem reputações, famílias, carreiras.
A política partidária no Brasil, hoje, é um passaporte para a intranquilidade, para o psiquiatra, para as páginas policiais dos portais de notícias.
Também é errada a regulação de despesas de campanha, e do tempo e época de propaganda eleitoral. Despesas não contabilizadas devem ser declaradas oportunamente, e se não o são que se transformem em dívidas de valor e cobradas normalmente como se cobra um cheque sem fundos. Afinal, há interesse fiscal nisso. E tem gente como Lula, Bolsonaro, e o próprio Moro, que estão em campanha eleitoral o ano inteiro, vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana. Apareceu na mídia, ganha flash. Não dá pra punir isso.
O dito pelo não dito:
“A luz se foi e agora nada mais resta a não ser esperar por um novo sol, um novo dia, nascido do mistério do tempo e do amor do homem pela luz.” (Gore Vidal, escritor norte-americano)
RENATO ZUPO – Magistrado, Juiz de Direito na Comarca de Araxá, Escritor, Palestrante.