Madonna
O show de Madonna em um palco eletrônico montado nas areias de Copacabana foi um megaevento mundial. Mesmo para quem não gosta desse tipo de música, os efeitos visuais superaram as expectativas dos críticos mais exigentes. E ela está mesmo em forma, Madonna continua sendo Madonna. E o Rio de Janeiro, o eterno cartão postal brasileiro, foi premiado como palco de um evento memorável.
O problema é a conta. A prefeitura do Rio e o respectivo estado arcaram, cada qual, com 10 milhões de reais, e a iniciativa privada pagou o resto da fatura. Como se gastou dinheiro público... já viu, né? Críticas e reclamações abundaram e desbundaram.
Lei Rouanet
A Lei de Incentivo à Cultura, ou Lei Rouanet, trata de verbas abdicadas do recolhimento de tributos federais, e não foi buscada pelos organizadores do evento de Madonna. É uma Lei muito injustiçada por conta de seu mau uso por alguns, mas é possível conter abusos sem coibir o uso. Ela é importante para artistas iniciantes e sem mercado e garante a popularização de eventos e mídias culturais.
No entanto, como cria um mecenato para artistas através de tributos federais, dinheiro público da União não estava por lá. Sinto muito, pessoal conservador, mas a culpa “não foi do Lula” dessa vez. Entes federados também não podem se autofinanciar, e não seria possível ao Governo Federal dar dinheiro para estados e municípios realizarem shows.
Dispensa de licitação
A Lei de licitações prevê hipóteses em que o poder público pode contratar pessoas naturais ou empresas privadas sem concursos e concorrências. Dentre estas, a notoriedade e especialidade do contratado. Depois dela, a nova Lei de Incentivo a Cultura, repaginada, também acresceu a possibilidade de contratação de artista notório, conhecido e único, novamente sem necessidade de tomada de preço.
Bem, não há ninguém mais “especial” que Madonna no mundo Pop e ainda hoje – acho que não é preciso falar isso, né? Valendo-se desta notoriedade, município e Estado do Rio pagaram parte da conta do show. O argumento dos gestores por detrás disso: o evento foi gratuito e aqueceu a economia do Rio (lojas, restau-rantes, bares e hotéis).
Ou seja, haveria finalidade pública, interesse público, no ordenamento da despesa. A justificativa cola bem no mundo jurídico, está de acordo com os manuais e alfarrábios, mas na prática e neste mundo politicamente correto (e chato) não colou.
Advogado do Diabo
Procurando entender o lado de quem foi contra show e despesas públicas a ele conectadas, vou momentaneamente passar para o lado dos detratores do evento, tentando entender seu inconformismo. É um exercício de retórica. Vou bancar o advogado do diabo aqui, até para que se veja como é curioso o mundo do Direito e como são bifurcadas suas encruzilhadas argumentativas. A dialética jurídica sempre admite teses antagônicas, pessoal.
Para princípio de conversa, há quem ache que Madonna e sua música nada têm de cultural, é um produto enlatado de má qualidade, com letras e performances indecentes, uma sexualidade andrógina aflorada demais que choca aos mais conservadores e deturpa a formação dos nossos jovens. Para esse pessoal, gastar dinheiro público com isso é (outra) indecência.
Toda arte, no entanto, é transgressora, e a sexualidade das letras e canções de Madonna está presente, por exemplo e também, nos Rolling Stones ou em Rita Lee. É do rock, e não se pode discriminar a um gênero musical.
Sinto muito, também, que uns e outros pensem que Madonna vale menos porque prestigia público lésbico, gay, e outras siglas, em suas performances apimentadas. Está na hora de parar com isso, pessoal: definir alguém pela sua preferência sexual sempre foi uma estupidez tremenda. Considerar imoral à alguém simplesmente porque busca sexo com pessoas do mesmo gênero é um comportamento sem qualquer fundamento justificável. E condenar alguém porque defende esta liberdade de escolha sexual soa medieval e, para alguns, criminoso.
Mais críticas
Também tem os eternos patriotas da cultura: pagaram 16 milhões de dólares por Madonna, quando há tantos artistas brasileiros tão bons quanto... Pessoal, aqui entra um pouco de subjetivismo, porque gosto é gosto. Eu preferiria Raul Seixas à Madonna, mas o rei do rock nacional está morto há décadas. Madonna é icônica e mundial, não uma estrangeira, e não se pode restringir as atividades de alguém simplesmente porque não nasceu em nosso país.
Ela vende muito mais que qualquer estrela brasileira. É o argumento capitalista que é invencível. A baiana Pitty ou a carioca Anita não chegam nem sequer próximas, conquanto promissoras. E governos tampouco pararam de financiar shows de artistas nacionais porque auxiliaram no custeio de Madonna. Não é assim: ou um ou outro.
Por fim, dirão que o show, de gratuito, não teve quase nada! Só não era cobrada entrada na areia da praia de Copacabana. Todo o resto caríssimo. Descamba, então, o último argumento dos detratores da cantora e de seu show em solo carioca. Tudo é pago no mundo, caras pálidas. O acesso ao evento é uma coisa, querer que se trabalhe de graça ao seu redor é ridículo. E ofende à Constituição.
Rio Grande debaixo d´água.
O Bom povo gaúcho sofre com enchentes e outros acidentes climáticos neste momento em que batemos nosso papo tradicional. Desejo a Eduardo Leite que supere estas dificuldades com a ajuda que tiver do Governo Federal. Não há culpados aqui. Só vítimas. É hora de aprender com a tragédia e buscar diminuir futuras ocorrências em anos futuros. O relevo e o clima, no sul do país, propiciam sempre violentas intempéries. Quando não é no Rio Grande do Sul, é em Santa Catarina.
Mauro Cid solto de novo
O ex-ordenança bolsonarista saiu e entrou e agora saiu da prisão preventiva que sofria, sempre a mando do Ministro Alexandre de Moraes. Foi colaborador premiado nos inquéritos movidos contra seu antigo chefe, e como delatou o que se queria provar, foi solto e, de investigado, se tornou testemunha – e testemunha tem a obrigação de dizer a verdade, sempre. É o que impõe a lei.
Após delatar, Cid foi solto em troca desta colaboração. Em uma confidência a um amigo através de aplicativo de mensagens, criticou a investigação e seus responsáveis, e foi preso de novo.
Essa a história até então e pelo que dela se decodificou, com vazamentos parciais de informações sigilosas através da imprensa. Agora, com a nova soltura de Cid, se “vaza” o motivo desta última prisão, agora revogada: por deixar de conferir credibilidade ao que dissera delatando, ainda que em mensagens privadas, invalidaria sua colaboração premiada, que fora o motivo da concessão da liberdade provisória.
Complicado, não?
Vou descomplicar: Cid só foi solto porque delatou Bolsonaro. Como depois de solto disse que a delação era mentira (em outras palavras), foi preso novamente. Nessa nova temporada na cadeia, voltou atrás e renovou a delação. Aí foi solto.
É isso.
Há um princípio na constituição, de nome latino complicado: nemo tenetur se detegere. É sua garantia de não produzir provas contra si. Eu não sou obrigado a confessar, a soprar o bafômetro, a mostrar onde escondi o cadáver ou a arma do crime. O Estado é que se vire para provar minha culpa.
O colaborador (delator) premiado, no entanto, abre mão desta prerrogativa. Porque confessa e delata comparsas, tem privilégios processuais: diminuição de pena, relativização do regime prisional, até perdão integral. Para isso, tem que sustentar sua delação, o que Cid não teria feito ao desabafar para um compadre em uma conversa de ZAP.
Pode ou não pode?
O que é estranho e não é muito bem aceito no Direito é a barganha da delação premiada pela liberdade provisória do suspeito delator. As prisões sem culpa não são moeda de troca por delações nos países democráticos do mundo. Estas prisões, inclusive no Brasil, existem para garantir a colheita da prova e a segurança social e dos envolvidos, enquanto se apura a verdade real.
Não se prende alguém porque não delata, ou se solta porque delata. Justamente pela garantia constitucional da não autoincriminação – que falamos - a colaboração premiada não pode servir para prender e soltar sem culpa formada. O acusado tem que abrir mão do direito ao silêncio, o que impõe um ato de sua vontade livre ao colaborar nas investigações. Ameaçado pela cadeia, fustigado pelo medo da perda da liberdade, não se pode falar de adesão verdadeiramente espontânea do acusado à tese acusatória.
O dito pelo não dito:
“Eu tentei ser um garoto, eu tentei ser uma garota, eu tentei ser uma bagunça, eu tentei ser a melhor. Eu acho que fiz tudo errado”. (Madonna, cantora americana).
RENATO ZUPO – Magistrado, é Juiz de Direito na Comarca de Araxá, Escritor, Palestrante