ENTRETANTO

Entretanto

Por: Renato Zupo | Categoria: Justiça | 15-06-2024 01:58 | 1225
Foto: Arquivo

Decoro parlamentar
Não é salutar a um parlamento receber o presidente da República  em visita oficial e aos gritos de “ladrão” – foi o que aconteceu com Lula, meses atrás, no Congresso Nacional. A resposta veio do vice presidente do PT na casa, que deu um tapa na cara de um deputado e chamou outro,  Nikolas Ferreira, de “viadinho”. Quebra de decoro coletivo pra um lado, individual pra outro, todos impunes. Agora, o deputado Janones voltou a bater boca com parlamentares de direita e (de novo) chamou Nikolas de “viado” e “boiola”. E não vai acontecer nada de novo.

Fosse o contrário, teríamos impeachment na certa. Há uma legislação silenciosa e não escrita no Brasil.  Se você for do sistema, tem liberdade de ex-pressão. Se for contra o sistema, agredirá as instituições ao criticá-las,  cometerá atos antidemocráticos e crimes contra  a honra.

Lembro-me de Bolsonaro esculhambando Maria do Rosário, então ambos deputados federais. O ex-presidente quase foi preso por um comentário relacionado a estupro que, anos antes, o então deputado Clodovil Hernandes fizera de uma colega parlamentar – menção bastante parecida relacionando as vítimas ao crime de estupro. Com Clodovil nada ocorreu, agora com Janones, idem.

Conservadores de geleia
A briga ideológica entre direita e esquerda não é igual. O pessoal da sinistra sabe brigar, vive historicamente disso. Ao contrário, tempos de paz não são promissores para políticos progressistas que vivem de lutas reais ou inventadas e revoluções culturais ou institucionais. Já os conservadores... Olavo de Carvalho  dizia  que ser conservador não é para homens e mulheres feitos de geleia. Tinha razão, como quase sempre.

Qualquer parlamentar agredido em pleno Congresso, fosse da esquerda, teria imediato direito à retorsão, defendendo-se imediatamente com o apoio de mídia, dos pares, da polícia e do Corpo de Bombeiros. Os congressistas conservadores pegam o boi ao não irem presos, mesmo quando vítimas de ofensas e agressões. Medo de muitos inquéritos em andamento no “reino da Dinamarca” Shakespeariano.

Lembro-me quando as pessoas estavam acampadas antes do 8 de janeiro, e até que o 8 de  janeiro se deu. Estava eu na minha comarca trabalhando na paz possível das audiências criminais quando me ligaram um ou dois figurões da sociedade: queriam apoio policial para as manifestações em  frente ao quartel local do Tiro de Guerra, porque no bairro havia muitos petistas e tinham medo  de confronto. Também queriam o trânsito parado até as 17 horas, porque depois desse horário tinham que buscar filhos na escola.

O problema da direita conservadora é que seus membros tem boleto para pagar final de mês, dívidas, compromissos. O militante de esquerda vive da militância, inclusive financeiramente. O duelo é desigual e os derrotados deste embate serão sempre aqueles que não vivem da política, direta ou indiretamente, e tem mais o que perder – inclusive a liberdade.

Nada!
Conhecidos me perguntam: onde vamos parar com nossa democracia cada vez mais questionável (segundo eles)? Michael J. Sandell explica essa corrosão da democracia em sua obra: após a Segunda Guerra Mundial os EUA e o mundo voltaram-se para as leis de mercado, esquecendo-se da  educação política indispensável à coesão popular  que mantém intocado o espírito republicano.

Sem esta coesão, este senso de pertencimento e identidade, é cada um por si, todos querendo mais dinheiro para consumir.  E o governante da vez, se garante um aumento salarial, asfalta sua rua, premia com casas populares ou cestas básicas, se transforma em estadista majestoso, pouco importam suas origens, intenções e resultados. É isto o que corrói a democracia, e estamos precisando rápido de um sistema político que a substitua.

Voltando à pergunta de muitos – vamos parar exatamente onde estamos, e nada vai mudar. Continuaremos criticando (ou não) decisões do STF e de nossos congressistas, xingando ou prendendo este ou aquele presidente da vez e nada vai mudar. Meu pai dizia: “Filho, no Brasil, todos somos carneirinhos, cordeirinhos, não pegamos em armas e não brigamos” – e vai continuar  assim. Graças a Deus somos da paz, ainda  que seja  a  pax romana, a paz sobre  os vencidos.

Me lembro de outra passagem de meu passado. Tinha um amigo, Jair Pontes, e em uma ocasião éramos adolescentes tardios perdidos no bar  “Mão Única”, na Savassi fantástica de minha juventude, bairro boêmio do  auge de uma Belo Horizonte ainda  pacata. Outros frequentadores discutiam política exaltados, na mesa ao lado. Ébrio, Jair se levantou,  dirigindo-se aos brados aos vizinhos: “Vocês sabem o que eu acho? Eu não acho nada!  Eu não acho nada!” – pois é. É o que eu também acho.

A Lei da Saidinha
Depois de muitos remendos e discussões, o Congresso Nacional derrubou o veto presidencial e aprovou a nova Lei da Saidinha, que veta a concessão das saídas temporárias ao longo do cumprimento das penas para  condenados por crimes hediondos ou cometidos com violência ou grave ameaça contra pessoa.

E já estão dizendo que o STF declarará a inconstitucionalidade desta lei. Chovem, de novo, críticas sobre os excelsos ministros da nossa mais alta  corte de  justiça do país. Como se interferissem em todos os poderes da República e mandassem sozinhos, e de toga, na nação.

Não vou entrar nesse mérito, porque há argumentos fortíssimos para um lado e para o outro desta queda de braço político-ideológica. Voltemos à saidinha. A nova lei é, de fato, inconstitucional,  e o STF deverá dizê-lo, por dois motivos.

Em primeiro lugar, toda a Lei de Execuções Penais (LEP) é voltada para a progressão de regime dos condenados, soltando-os aos poucos, paulatinamente, conforme se adaptem progressivamente ao retorno à sociedade e tenha bom comportamento carcerário.  Neste sentido, abolir a saída temporária, mesmo para alguns casos apenas, é ir de encontro ao próprio espírito da lei específica, que também foi contemplada pela Constituição Federal.

O segundo ponto, importante, foi também o que fez os tribunais destruírem na prática a Lei de Crimes Hediondos. A individualização da pena é uma garantia constitucional – e isso vale para o processo, a condenação e para a execução da pena. Não basta proibir genericamente a saída temporária, ou a progressão de regime, ou a liberdade provisória. Para fazê-lo, o magistrado deve decidir caso a caso, conforme o merecimento, a conveniência da medida e a necessidade daquele condenado em específico. Portanto, não deve ser abolida a saída temporária. O que o Estado deve fazer é aquilo que a LEP determina, mas com esmero e eficiência: exame criminológico e de adequação social de todo reeducando que hipoteticamente faça jus a este benefício.

Há casos desastrosos e por vezes trágicos de detentos que cometem crimes graves durante as saídas temporárias.  Estes fatos lamentáveis teriam sido evitados com exames criminológicos sérios e bem feitos, que discernissem a índole e o temperamento dos presos, seu acolhimento familiar em meio livre, sua propensão (ou não) à reincidência. 

Culpa grave
Em votação apertada, o CNJ decidiu manter  o afastamento da juíza Gabriela Hardt e de três desembargadores federais que trabalharam nos  processos da Operação Lava-Jato, deliberando contra  a recomendação  do presidente do STF, o ministro Luiz Roberto Barroso.  Ele advertira, em voto anterior, que o processamento e a punição de magistrados pela atuação  jurisdicional somente  pode se dar em casos excepcionalíssimos de culpa grave,  o que não via no caso concreto.

Vamos explicar. Juízes realizam ações administrativas e jurisdicionais, e podem ser responsabilizados só pelas primeiras. Sua conduta na administração pública pode ser investigada e punida por suas corregedorias e pelo CNJ, quando (por exemplo), sejam omissos em trabalhar,  pouco operosos, desrespeitosos, ou desviem dinheiro público – estas ações são fora das decisões nos autos do processo. Já quando os magistrados decidem dentro do processo, proferindo decisões de mérito, decidindo de fato, praticam atos jurisdicionais. E a lei diz que são intocáveis por elas, não podem ser responsabilizados pelo que decidam. Para muito além do que o ministro Barroso diz e entende, não há “culpa grave” do juiz que decide, aliás não há culpa alguma – aos olhos da lei.

No entanto, com ou sem culpa grave, com ou sem razão o ministro Barroso, o CNJ manteve o afastamento dos magistrados que atuaram na Lava-Jato. Teriam feito o mesmo com Sérgio Moro se ele ainda fosse juiz  - disso já me prevenira um amigo promotor de  justiça. Os mandatos eletivos dele e de Dallagnol, muito antes de atender aos seus apreços e paixões políticas, seria para blindá-los institucionalmente. No caso de Deltan, não funcionou.

O que fizeram?
Durante a Lava-jato e todo o reboliço que a envolveu, os procuradores de Curitiba eram os encarregados daquela persecução penal em várias frentes. avia centenas de processos e inquéritos em andamento,  todos primeiro sob a batuta do juiz Sérgio Moro, depois substituído pela juíza Gabriela Hardt.

Por vários anos, ocorreram inúmeras delações, confissões, devolução de valores aos cofres públicos e confisco de dinheiro desviado do erário ou obtido por meio de corrupção em várias esferas e de diversas espécies – esta é a versão da época e dos autos.

Pois bem. Sob o comando de Deltan Dallagnol, procurador chefe daquela mega operação, se criou um fundo para gerir a este dinheiro, o que contou com decisões favoráveis dos magistrados envolvidos nos processos. Primeiro Moro, depois Hardt, e em seguida e em superior instância, três desembargadores federais (cujos nomes estão até aqui blindados da mídia).

A intenção oficial do Fundo seria direcionar estes recursos para ações positivas governamentais ou auxiliar entidades de declarada utilidade pública.  O dinheiro jamais chegou a ser direcionado para este fim, porque suspensa a destinação por decisões superiores, e uma boa parte dele foi devolvida aos réus da Lava-jato, também por decisões judiciais – em sua maioria do STF.

Imprudência
Já alertei aqui que considero imprudente esta inovação jurídica criada pelos gestores da Lava-Jato. Perigosa, no mínimo, como se viu. E a megaoperação se desconstruiu, como era presumível que o fosse. Não se atraem competências driblando o entendimento legal e o apelo midiático sobre os trabalhos de Dallagnol, Moro e seus colegas, foi excessivo e prejudicial para a seriedade daqueles processos. Acabou se politizando aquilo que somente deveria ser a busca da verdade real e a pacificação social, o que deve de fato interessar aos operadores do Direito Penal.

Também não dá certo criar inquéritos e processos tentaculares e sem fim, com indiciados exibidos em praça pública, mas sem réus com culpa formada.  Neste sentido, a Lava-Jato foi um  (péssimo) exemplo para juízes e membros  do Ministério Público de todo o Brasil. Não somos paladinos da justiça, justiceiros ou homens mídia. Simplesmente analisamos a prova, dela extraímos a verdade e aplicamos a lei.

E os processos devem possuir começo, meio e fim.  Por mais que respeitemos as polícias, não podemos entrar em seu afã persecutório ao primeiro aceno de indícios fomentado por investigações superficiais. Inquéritos sem fim acabam em pizza ou em injustiça, ou em ambas. No caso da Lava-Jato, a maioria dos seus indiciados, presos, foi solta. Condenados,  foram absolvidos ou descondenados. Inelegíveis, voltaram a ser elegíveis e, em vários casos, eleitos.

Só poderia dar nisso
As pessoas entendem mal quando criticamos a Lava-Jato. Não é que, com isto, se esteja criticando o combate à corrupção. Juiz não combate nada. Juiz julga. Não se transforma em vingador estatal. E há formas e formas de se combater a corrupção: a certa, a correta, é respeitando o devido processo legal e o estado democrático de Direito, presumindo inocência e só punindo após culpa formada.

O dito pelo não dito:
De todas as paixões baixas, o medo é a mais amaldiçoada.” (William Shakespeare, escritor e dramaturgo inglês).

RENATO ZUPO, Magistrado, Juiz de Direito na Comarca de Araxá, Professor, Escritor, Palestrante.