Paulo Figueiredo
Sempre gostei da prosa jornalística de Paulo Figueiredo, hoje blogueiro e youtubber “exilado” nos Estados Unidos. Teve contas bancárias e redes sociais bloqueadas por supostas desinformações, Fake News e por compor hipoteticamente o chamado “Gabinete do Ódio”. Hipotética e ideologicamente.
Crime de opinião? Jornalistas de esquerda são muito mais contundentes e vez ou outra distorcem os fatos com bastante mais assiduidade e estão por aí, proseando o que bem entendem. Canso de repetir: quando o discurso era um só, todos podiam falar o que bem entendessem. Com o confronto de ideias, há os que não podem mais expressá-las.
Voltando ao Paulo, da América livre ele continua se manifestando e na oportunidade de um comentário sobre uma afronta sofrida pelo Ministro Alexandre de Moraes em um restaurante paulistano, mencionou que seu avô, quando presidente da república, era adulado e idolatrado por onde passasse.
Não se esqueçam e quem não sabe aprenda: o avô do Paulo é o ex-presidente General João Batista Figueiredo, o último do regime militar.
O avô
Vivi intensamente os anos do General Figueiredo no poder. Eu era então um adolescente politizado. Depois dissequei aquele período político-histórico através de obras como “O Sacerdote e o Feiticeiro”, de Elio Gaspari. O último presidente militar foi intenso, o adjetivo que melhor o definiria. Era rude, truculento, gostava de cavalos, afirmando preferi-los às pessoas. Também pediu que o esquecessem quando saiu do poder, e certa vez pegou um jornalista pelo colarinho e sacudiu durante uma entrevista, mandando-o calar a boca, aos berros.
Talvez por este mau humor nato e por ser, afinal, um general no poder em um período (ainda) de exceção democrática, as pessoas o adulassem quando o viam na rua. Medo ou respeito? Naquela época, com sacolejos e berros calavam-se os opositores. Hoje a coisa é mais refinada, mas adversários políticos são calados do mesmo jeito, e por mais tempo. Que o diga o neto do presidente Figueiredo.
No entanto, foi Figueiredo (o avô), com aquela brabeza toda, que permitiu a reabertura política, a anistia, e trouxe de volta opositores de esquerda exilados no exterior, os repatriando. Deixou que Leonel Brizola voltasse, ele que tentara um golpe de estado quando derrubaram do poder seu cunhado João Goulart. Permitiu a sucessão indireta e entregou o poder a José Sarney, com Tancredo Neves gravemente enfermo. Era Tancredo o eleito, depois morto, e Sarney terminou a redemocratização brasileira iniciada por Figueiredo.
O menos mau
Havia uma ala mais dura do Exército que não queria devolver o poder aos civis de forma alguma. Silvio Frota e Newton Cruz eram dois dos generais que defendiam o “Golpe dentro do Golpe”, forçando o prosseguimento do regime militar e apeando Figueiredo do poder. Iria voltar a porrada e o AI-5 se perpetuaria com outro nome.
Depois de passar a faixa presidencial a Sarney, o General Figueiredo, o avô do Guilherme, o que preferia cavalos à pessoas, segredou a amigos em um bate papo etílico (felizmente filmado e exibido no Fantástico, na década de 90), que não permitiria mais a impunidade de militares prendendo e arrebentando. Transmitiu esta intolerância aos subordinados diretos e mais próximos e acendeu uma disputa interna que soube contornar – não com elegância e galhardia, que esse não era seu estilo. Com uma truculência do bem, mandou avisar que saberia ser pior ainda se necessário fosse e que o período das Forças Armadas à frente da nação estava se encerrando.
Esqueci de dizer. Figueiredo achava o poder uma chatice e só assumiu a presidên-cia para evitar que a repressão endurecesse mais ainda. Desde o início no Palácio da Alvorada, planejou a anistia de seus adversários e a reabertura democrática. Era o menos mau deles todos.
Sobre a ditadura
Lembro-me de Jair Bolsonaro comentando ironicamente o período de exceção do regime militar. Ele salientou que era a única ditadura do mundo com sucessão no poder e eleições, ainda que indiretas. Verdade. Foram cinco diferentes presidentes da República, eleitos por colégios eleitorais com representatividade – eleições indiretas, como sempre foram as americanas. Guardadas as devidas proporções, pelo amor de Deus.
Poucos se lembram ou sabem, mas havia oposição ao regime militar e candidatos (derrotados) nos colégios eleitorais durante as sucessões. Mário Covas e Ulisses Guimarães foram opositores declarados e, conquanto investigados pelos órgãos de segurança da época, faziam política livremente.
Gosto sempre de acrescentar, quando comentamos aqui sobre o regime militar, que todo período de exceção democrática é ruim, toda “ditadura” é ruim. Mas a nossa foi bastante peculiar, pelos motivos lembrados por Bolsonaro e por razões históricas. Nós brasileiros não somos de briga, ou ao menos não éramos.
Manipulação
Ao ensejo de desinformação e manipulação de informações, assistam à nova série documental da Netflix: Hitler e o Nazismo. Mas assistam com cuidado. É parcialmente baseada na obra do jornalista William Shirer, que li, “Ascenção e Queda do III Reich”. Shirer era correspondente americano na Alemanha desde o surgimento do nazismo até seu ocaso e escreveu em tempo real a tudo que presenciou, em um documento histórico precioso. No entanto, a série entremeia os relatos do autor com depoimentos atuais de especialistas modernos, e aí é que a coisa esculhamba.
Explico. Shirer, e qualquer outro jornalista ou historiador sério da época, jamais acoplou a ideia do nazismo ao extremismo conservador e ao combate ao comunismo – tampouco Hitler o fez em sua obra asquerosa e autobiográfica, “Mein Kampf”. Os especialistas atuais entrevistados na série documental é que dizem isso, como se estivessem complementando o livro que lhe deu origem.
O nazismo era o nazismo, peculiaríssimo, e não um movimento político de “extrema direita”. Hitler não tinha lado e era antissemita porque os judeus eram os detentores do capital, a elite endinheirada e odiada que ainda dava as cartas na economia combalida da Alemanha entre as guerras, no período que ficou conhecido como a “República de Weimar”. Tanto que a primeira medida tomada contra os judeus quando o partido nazista assume o poder é um embargo econômico… às suas lojas, indústrias e fábricas, incentivando alemães a não comprarem sua produção – fato admitido na série.
Deem um Google
O discurso de Hitler era, ao contrário, bastante semelhante ao dos líderes da esquerda de ontem e hoje: um governo para o povo, com chances para os oprimidos e igualdade para todos os alemães. Você já ouviu isso, não é mesmo? Bem de pertinho... Eclodida a Segunda Guerra, o primeiro aliado da Alemanha não foi o fascista italiano Mussolini, mas o líder comunista soviético Josef Stalin, através do Tratado Hibbentrop-Molotov. Pesquisem, deem um Google.
Depois e de fato, a Alemanha nazista ataca aos bolcheviques soviéticos, mas por dois motivos. Sua ideologia desprezava eslavos russos, uma sub-raça para a mente doentia do líder alemão, que também buscava o que se denominava “espaço vital”. A Alemanha nazista precisava expandir suas fronteiras e à oeste não conseguia: por lá a Inglaterra, os EUA e o Oceano Atlântico travavam suas pretensões hediondas.
É claro que havia um conteúdo racista forte na ideologia nazista, e os judeus eram vítimas disso. Todavia, isso precedia a Alemanha do período entreguerras e também era anterior à teologia ariana de Hitler e seus comparsas. Toda a Europa desprezava racialmente os judeus, tidos como párias, um povo sem território, banido em todos os países do velho continente e que tinha que se sustentar graças à sua genialidade e ao trabalho diuturno. Por isto prosperavam.
Curiosidades
Como eu já disse aqui neste espaço, e várias vezes: o nazismo não era um movimento de direita ou de esquerda, o nazismo era peculiaríssimo. Hitler pretendia o poder e teria defendido o Coelhinho da Páscoa e atacado Papai Noel se isto lhe garantisse o controle estatal alemão. Aproveitou-se da crise econômica e do ódio racial preexistente contra judeus endinheirados para convencer eleitores a dar-lhe o cetro de “Fuhrer”, líder supremo germânico, e depois tentar dominar o mundo através de uma guerra de extermínio onde combateu todas as raças.
É claro que o partido nazista também lutou contra comunistas alemães. Como atacou todos os outros partidos, porque pretendia o controle político do Reichstag, o parlamento, e depois do país. Não significa que nazistas fossem exclusivamente contra as esquerdas. Eram contra tudo e todos que não fossem nazistas.
A série define judeus da época como “de esquerda” – se até então a distorção era sutil, com isso passa a ser escandalosa. Basta comparar o que boa parte da mídia faz, agora, com a pátria deles, Israel: são a “direita” que ataca os pobres palestinos oprimidos – é o rótulo que lhes aplicam hoje. Pelo amor de Deus, se decidam, pombas! E parem de manipular, para princípio de conversa porque o mundo não é só este entrevero ridículo entre direita e esquerda. Há nuances. O pensamento político mundial não é binário. E nem bipolar.
Ler é sempre bom
Edmund Wilson, seríssimo historiador americano, em seu livro “Rumo à Estação Finlândia”, narra a saga vitoriosa de Lenin, líder comunista bolchevique que toma o poder dos czares na revolução russa de 1918. Ele elucida a uma questão crucial para entender o nazismo. Para isto, aponta primeiro a uma curiosidade: o filósofo Karl Marx, criador do marxismo socialista, e todos os seus primeiros seguidores, eram alemães. Então, por que sua ideologia não vingou na Alemanha, triunfando em primeiro lugar na Rússia? - é a indagação de Lenin, parafraseada pelo autor.
É porque – a obra explica – o espaço ideológico ocupável pelo comunismo junto às massas proletárias germânicas já estava, então, tomado por uma outra ideologia e por um outro partido, que primeiro se intitulava “Trabalhista Alemão”. Depois, foi renomeado “Partido Nacional Socialista” – ou Nazista, como o mundo o conheceu.
O dito pelo não dito
“Duas pessoas jamais leram o mesmo livro” (Edmund Wilson, escritor e ensaísta americano).
RENATO ZUPO – Magistrado, Juiz de Direito na Comarca de Araxá, Professor, Escritor, Palestrante.