• CONVERSA FORA •

Mal pensando | Na presença da Santíssima Majestade

Por: Redação | Categoria: Cidades | 18-09-2024 04:57 | 156
Foto: Arquivo

Mal pensando

por André Rodrigues Pádua

Para essa semana, eu havia planejado escrever algo relacionado a algum acontecimento recente, de destaque no país e com repercussão razoável, que fosse um denominador comum entre esta caneta e seus olhos (sim, seus mesmo, que agora está lendo). Isso para manter o texto vivo, imediato, sem desperdiçar a fertilidade do atual. Mas olha, pensando bem, é mais recomendável poupar a consciência do leitor de mais uma dose de fatos correntes, cuja redundância nas telas de televisores, smartphones e computadores certamente já é mais que o suficiente para enfastiar até mesmo o apetite dos maiores glutões da informação. Além do mais, meu papel aqui não é fazer notícia.

Assim sendo, parece-me que o melhor mesmo para a crônica é investir no prosaico, no corriqueiro: conversas perdidas nas esquinas, migalhas de pão francês, o preço – sempre amargo – das coisas, e por aí vai. Nesse caso, ainda que seja abordado algum fato completamente alheio ao leitor, a comunhão de vivências similares garante que não nos distanciemos, e que estas letras permaneçam coradas e respirando. Agora mesmo, enquanto vou escrevendo, porém, me ocorre uma coisa: pensando bem, quem lê sempre procura algo a mais, para além da mesmice em que seguimos vivendo. Quer se aliviar, ainda que fugazmente, desse nosso penoso vaivém de sol e lua ou, pelo menos, busca qualquer coisa que ponha a dançar a cabeça.

Vamos seguir por outro caminho, então. É desejável, de fato, que a crônica seja abastecida de reflexão, desde que não excessivamente pretensiosa, formalista, com muitas sobras de linguagem, sob pena de desnaturar o próprio gênero. As ideias devem ser simples o suficiente para não quererem se projetar muito no tempo, mas com recheio o bastante para que os leitores a carreguem debaixo do braço por alguns dias, ou horas. Pensando bem, o problema disso é que…

Ah, que saber? Ou se pensa bem, ou se escreve crônica.

 

Na presença da Santíssima Majestade

por Murilo Caliari

No meu sonho eu adentrei uma floresta e segui o curso de um rio que desembocava num vale onde numa concavidade residia um grupo de monges. Aproximei deles, que entoavam um Atman. Foi quando avistei do fundo do rochedo a figura iluminada e muito limpa de Sua Majestade trajando um manto escarlate cintilante, que brilhava como as estrelas. Cabelos longos e labios pintados. Uma figura androgena. Seu brilho era penetrante. Num relance baixei os olhos e reencontrei-os no reflexo reluzente daquela pequena represa que se formava no entorno, vi que meu rosto não tinha pelos. Nem sinal de barba, sobrancelhas, nem ao menos cílios. Peito nu, e calça de malha leve e confortável. Percebi meu bolso avolumado pendendo do tecido de algodão cru. Enfiei a mão, encontrei uma sacola costurada, enrolada em fios de ouro. Ao desamarrar o fecho, descobri um casco de tartaruga, era um filhote que aos poucos foi aparecendo de dentro com movimentos delicados e ternos. A Deldade Suprema veio andando sobre a água. Entreguei-lhe a tartaruga. Em agradecimento ela me entregou outro pacote mágico e soprou-me a vida com o frescor de um hálito perfumado. Acordei, minha respiração melhorou, meu corpo voltou a funcionar e meu coração bate despreocupado. A imagem daquele templo ficou cravada no meu subconsciente e não existe mais nada que possa me chatear.