por André Rodrigues Pádua
Alguém já cantou por aí que a confusão pode esclarecer. E se é assim, o entendimento pode não ser sempre lá aquelas coisas.
Evidentemente que não estou fazendo nenhum elogio à ignorância no jornal. Se a realidade nos desvencilha com um drible, não é negócio fazer falta pra buscar a bola. Primeiro porque tentar retomá-la vai exigir mais pernas do que as que nos foram dadas. Segundo, porque é jogada de indiscutível cartão vermelho.
Tampouco quero que esta reflexão seja lida como se tivesse sido escrita à caneta cor de inércia. Longe disso. Só parece que, muitas vezes, quando se pretende desenhar os mais detalhados mapas e trajetos, acaba-se dando de testa com a aspereza de um beco torto, de onde é difícil sair à marcha ré. E, por mais contraditório que pareça, esse movimento pode revelar mais acanhamento do que o (nem tão) simples ato de se deparar com um cenário incapturável e admitir sua aversão a gaiolas. A realidade fustiga, mas ela também canta.
Se o leitor não estiver conseguindo me acompanhar de perto, talvez o relato da origem dessas reflexões possa fazer com que eu me mantenha à sua vista. Fui ao Rio de Janeiro uma vez em minha vida. Na Praça Mauá, em uma quinta-feira, ou quem sabe fosse segunda ou terça, os pescadores assumiam seu posto – a praça flerta com o mar. Munidos de toda sorte de petrechos, aguardavam em sol e silêncio a rendição dos peixes. Eu zanzava com a tranquilidade de quem, no momento, queria tudo e nada, como é a praxe do turista.
E então, o drible.
Um dos pescadores tinha, a seu lado, uma garrafa pet de refrigerante, cheia de água. À medida que os circunstantes se aproximavam, percebia-se que dentro da garrafa havia um peixe, que, pelo tamanho razoável, certamente não poderia ter sido introduzido pelo bico do recipiente. O homem aguardava os peixes, pescava sobressaltos – incluindo o meu – e ria, soberano, enquanto um amigo oferecia um modesto prêmio em reais para quem adivinhasse como o animal havia parado ali dentro. Fui embora entretido e pensando – bobeira! É só um gozador.
Hoje, com menos cabelos e a cada dia mais mineiro, tenho que aquela jocosa beira de oceano era, na verdade, um professor. Um professor cuja lição tenho aprendido a desentender.
Ficou mais claro agora? Espero, de coração, que não.
por Murilo Caliari
Desde que me mudei pra Belo Horizonte convivo com o filho do meu amigo que tem três anos e meio. Dividimos casa e inventamos algumas formas para nos distrairmos. Ele gosta de cantar e para meu desconforto adora o desenho da patrulha canina - são cães policiais estadunidenses de mal gosto estético, uma animação cheia de estímulos fotossensíveis, com cortes rápidos, falas bobas e com apelo grande comercial, uma droga ultramoderna. Mas nesse dia a tevê estava desligada e partimos com jogos de palavras. Pergunto pra que serve o espelho e ele responde que é pra ver como tá o batom. Lembro de minha mãe conferindo o batom no espelhinho do quebra-sol do Pálio. Pergunto o que é o sol, ele diz que é igual uma estrela grande. Mas logo o Joaquim cansou de ficar batendo-papo, disse que devíamos brincar de brinquedo.
Eu expliquei que haviam tarefas domésticas a serem feitas. Ele disse que criança é pra brincar. Eu falei que precisava lavar a louça. Antes que ele pudesse reclamar, desloquei o foco da ideia. Iríamos ouvir Cabeça Dinossauro. Peguei a caixinha de som que meus pais trouxeram do Paraguai e coloquei pra tocar o punk rock dos Titãs. Entreguei-lhe dois pedaços de galhos e o menino juntou umas tralhas e improvisou a bateria.
Mas nada dura pra sempre. Demorei mais do que de costume para lavar a frigideira de Teflon com o lado amarelo da bucha. Enquanto a música terminava e a espuma era desfeita na pia, surgiu-me a brilhante solução e propus: vamos brincar de buscar lá em cima um balde com água e passar um pano no chão?
Vamos. Subimos, mas acabamos esquecendo do objetivo porque ficamos viajando nos papelões que trouxe do hortifruti para fins artísticos. Ele falou: todo mundo faz uma cidade. Perguntei pra que servia uma cidade, a resposta era que servia pro carro passar e ver os prédios. Ele ordenou que os pedaços de papelão virassem ruas e pontes. Depois mexemos na água verde da piscina de plástico até ficar meio chato e molhado.
Chuviscava. Daí veio o balde e a camisa vermelha que mais parecia uma capa de super herói. E as luvas velhas, impregnadas de tinta à óleo, tornavam as mãozinhas dele gigantescas. Ele enfiou o balde na cabeça, pegou um galho na mão e lançou um feitiço: birim bim bim, você vai virar uma lagartixa! Enfim o galho foi transmutado numa baqueta que fazia soar o tambor acoplado na cabeça.
Ele andava meio tonto, cabra-cega. E a marcha era sobre o Senhor Cabeça de Balde. Repetindo o ritmo, criou-se esta irritante canção: “Cabeça de Balde... Cabeça de balde! Desce a escada, escada rolante. Galho na mão, dedos de meia. Luva de tinta, capa de chuva! Trator de metal, cabeça de balde”... E assim fomos indo. Distraídos, vencemos o tédio.