As dificuldades da vida na roça não impediram que a educadora Marinilda Aparecida da Silva realizasse os seus sonhos. De origem humilde, nascida e criada na zona rural, na região dos Volpes, e sem muitas perspectivas após se formar no primário, Marinilda sempre foi perseverante e não deixou que a mínima oportunidade para realizar seus sonhos lhe escapasse. Apesar de todas as dificuldades, ela superou as barreiras impostas pelas condições e pela vida em sua época de criança e adolescente. Filha do senhor Adair Pacheco da Silva e Ana Maria da Silva, irmã do Eduardo e da Denise, essa professora, ainda pequena, viu nos livros que existia um mundo além daquele que ela estava habituada e hoje luta para que crianças possam ter a mesma visão. Para ela a educação é uma ferramenta de transformação e é emocionada que ela recorda sua trajetória ao longo dos seus 23 anos de atuação e 47 de vida.
Jornal do Sudoeste: Você foi criada na zona rural e, apesar dos estereótipos, pôde ter acesso a livros e revistar. Como foi isso?
Marinilda Aparecida da Silva: Sim. Hoje sou formada em Magistério, tenho licenciatura em Letras, pós-graduação em Metodologia da Língua Portuguesa, Supervisão e sou especialista em gestão escolar pela Universidade Federal de Outro Preto. Nasci na zona rural de Paraíso, mas tinha um diferencial na minha família: embora fosse filha de lavradores, de pessoas muito simples da zona rural, meu pai adorava livros, revistas e gibis e lá em casa tinha muito. Era um diferencial porque isso não fazia parte da realidade daquela região. Imagina isso na década de 70? Ele havia sido alfabetizado no que era chamado à época de “Mobral” e tinha aquela paixão por isso. Cresci com isso, através dos livros, daquelas histórias a que tive acesso, percebi que havia uma vida diferente daquela que eu vivia e que não precisava me acostumar com ela. Então tive aquele sonho de estudar.
Jornal do Sudoeste: Tudo era mais difícil, não?
M.A.S: Sim. Quando terminei o quarto ano no Napoleão Volpe, e naquela época você terminava essa alfabetização e ficava lá na roça mesmo, fiquei sem perspectivas e entrei em desespero na época porque eu não ia conseguir estudar e sabia que a única forma de mudar de vida seria estudando. É por isso que hoje eu milito tanto para que as pessoas tenham condições de seguir seus estudos e quando vejo esses financiamentos estudantis sendo cortados pelo Governo Federal, me dá uma tristeza muito grande porque me coloco no lugar dessas pessoas; se eu tivesse tido essas condições na minha época, minha vida teria sido diferente, muito mais tranquila, mas não foi.
Jornal do Sudoeste: E como você fez para correr atrás do prejuízo?
M.A.S: Quando eu tinha entre 15 e 16 anos surgiu o CESEC em Paraíso, era a oportunidade que eu tinha e a abracei com unhas e dentes. Fiz o supletivo de 5º a 8º série e terminei. Esse foi o primeiro ano que houve transporte escolar da roça para a cidade, isso em 1989, era a gestão do prefeito Waldir Marcolini e esse transporte para alunos era uma promessa de campanha dele. Então, consegui uma bolsa de estudos no Colégio Paula Frassinetti, onde fiz Magistério e o Ensino Médio. Imagina alguém que tinha saído de um supletivo e já pegar um Ensino Médio no Colégio? Mas eu tive muita ajuda dos colegas, estudava muito e consegui me formar.
Jornal do Sudoeste: Quando concluiu já ingressou no Ensino Superior?
M.A.S: Sim. Fui estudar Letras em Passos. Foi outra luta e outro sacrifício. E naquela época estudar parecia um crime, não existia isso de estudar, não fazia parte da nossa cultura. Então eu bati de frente com família, vizinhos, amigos, parentes. Parece que aquela vida na roça era somente aquilo, mas eu não queria somente aquilo, eu queria ir além. Nesse período trabalhei na Superintendência de Ensino por dois anos e quando terminei a faculdade prestei concurso para a Prefeitura e me efetivei, em 1995. Comecei no cargo de Magistério com crianças do 1º a 5º ano e na educação infantil e fui pegando gosto por essa área e me especializando. Na gestão da então prefeita da época, Marilda Melles, fiquei sete anos na direção de escolas da zona rural, em Termópolis e no Morro Vermelho e nesse meio tempo dei aula de Língua Portuguesa em Guardinha. Também trabalhei na recepção da Ampara de 1996 a 2002 - não tem nada a ver com o que eu fazia, mas foi bom esse tempo porque me ensinou a lidar com o público, foi um tempo de aprendizado.
Jornal do Sudoeste: Qual foi sua primeira experiência em sala de aula?
M.A.S: Minha experiência em sala de aula começou na Ipomeia, e na época era sala multisseriada, tinha o primeiro e terceiro ano, mas depois de um tempo fui para a escola Roque Scarano. Foi muito produtivo e foi aí que tomei gosto pela alfabetização. Depois eu comecei a pegar turmas de pré-escola, mas passado um tempo fui trabalhar na Secretaria Municipal de Educação com supervisão de Educação Infantil. Fiquei de 1998 a 2000 nessa supervisão. Depois passei para a direção de Termópolis, nesse meio tempo prestei outro concurso e peguei aulas de Língua Portuguesa em Guardinha, durante três anos. Depois me exonerei deste cargo, voltei para a Secretaria Municipal de Educação na supervisão da educação Infantil e também trabalhava com a Educação de Jovens e Adultos (EJA) no Campos do Amaral. Em 2010 houve o concurso para a direção do CMEI Vinícius Scarano e aqui estou até hoje.
Jornal do Sudoeste: Você lidou com públicos diferentes. Há muita diferença no ensino desses públicos?
M.A.S: Lidei e há um ano dou aula de Pedagogia na Faculdade Calafiori, isso foi um acontecimento para mim. Analisando, não há muitas diferenças entre esses públicos, há claro, suas especificidades. Com a criança tem toda a questão da pedagogia; em 2015 fizemos um curso sobre a abordagem Pikler, que surgiu no pós-guerra com Emma Pikler, em Budapeste, e é uma revolução no trato com a Educação Infantil. Isso era tudo o que sonhávamos, mas não tínhamos muita noção; essa abordagem é perceber a criança como gente, olhar para ela como um ser que você precisa pedir licença e não apenas impor como é habitual de se fazer com a criança. É outro olhar, é o olhar de que a criança é um ser humano e precisa ser respeitada. Já a alfabetização de adultos é preciso um cuidado muito grande, porque é um público que já vem com a autoestima defasada e vem com aquele sonho de aprender a ler e escrever e quando você consegue corresponder a isso é uma emoção muito grande. É lindo. Já com o Ensino Superior é preparar aquele aluno para ter essa visão e trabalha com eles a teoria aliada à prática. Eu percebo que o pessoal gosta bastante do meu trabalho porque eu estou levando minha prática e minha vivência de 23 anos de Educação a eles.
Jornal do Sudoeste: Apesar de ser uma figura fundamental na vida de todos, o professor ainda é muito desvalorizado. Como você lida com isso?
M.A.S: É um questão histórica essa desvalorização do professor em todas as formas. Isso tanto na questão de remuneração quanto socialmente. As pessoas olham o professor como se ele fosse um coitado e isso não pode existir. É um profissional que está ali, fazendo a vida dele, realizando sonhos, lidando com vidas e tem que ter essa postura de valorização de si mesmo. A nossa sociedade valoriza dinheiro, se é uma profissão que gera isso, há uma valorização maior para ela e precisamos mudar essa visão. É um momento difícil em nossa sociedade, precisamos fomentar esse debate e precisamos de uma educação de qualidade. Hoje conseguimos colocar praticamente todos na escola, mas não é só isso, é preciso uma qualidade na educação e não apenas ensinar o aluno a ler e escrever, as pessoas precisam também saber pensar. Nós sabemos que países que investiram na educação estão todos muito bem. É preciso que haja pessoas críticas, que saibam se posicionar e defender suas ideias.
J. S.: Hoje o professor parece estar impotente diante do aluno. Você acredita que vivemos uma inversão de valores?
M.A.S: Isso é muito comum porque o professor não é mais valorizado. O aluno ganhou força e embora ele mereça ser respeitado, tem que haver a contrapartida e o aluno também respeitar o professor. Eu não sei o que acontece hoje, antigamente, o professor ou o diretor da escola era uma figura muito respeitada, havia essa hierarquia - que precisa existir. É preciso que o aluno respeite o professor e vice-versa. Nessa abordagem de Picker, por exemplo, nós aprendemos que é preciso ensinar a criança a respeitar e isso acontece a partir do momento que nós a respeitamos em todos os seus aspectos, mas exigindo também que ela respeite. A própria abordagem diz que “o amor exige rigor”, não no sentido de agressão, mas no sentido de limites.
J. S.: Como lidar com toda essa carga emocional no ambiente escolar?
M.A.S: Isso passa pela formação do profissional propriamente dito e os cursos de pedagogia de agora em diante vão ter que trabalhar muito com a questão da empatia, socialização e até emocional do professor. É muito fácil falar fora da realidade, mas imagina um professor ali, diante de 40 alunos e ter que dar conta dessa turma toda. Uma hora ou outra ele vai ceder, o professor também é humano. É preciso esse equilíbrio e envolvimento da escola, não é o professor sozinho, é toda a equipe voltada para essa situação. Realmente está muito difícil e não é apenas em escolas de periferias, são todas; é um momento que acredito que seja motivado por essa agitação que atravessa o país, crise financeira que tem feito pessoas sofrerem e isso acaba refletindo na escola. A violência na escola precisa ser trabalhada com critérios e cuidado e o poder público tem que estar junto com o professor.
J. S.: Qual o maior desafio para a Educação hoje?
M.A.S: É a qualidade no ensino, oferecer uma escola de qualidade para a sociedade, pensando no que ela quer, o que ela precisa e o que meu aluno precisa para a vida dele. Esse ainda é um momento de discussão e é o principal desafio. Tivemos a 3ª Conferência Municipal de Educação que trabalhou muito em cima dessas discussões sobre qualidade do ensino, democracia – e entender que democracia é poder falar e não agredir o outro, mas poder se expressar e não ser algo unilateral, o que pode gerar insatisfação na sociedade. São diversos fatores que precisam ser repensados. Momentos como a Conferência de Educação precisam existir, mas é preciso mais.
J. S.: Lidar com crianças pequenas deve ser um desafio ainda maior, não?
M.A.S: Quando você traz a criança para a creche você não está simplesmente dando comida e cuidados para ela, mas mostrando a essa criança que existe um mundo maior. Assim como eu vi que existia nos livros um mundo diferente para mim, eles também podem ver por meio dos livros que nós vamos ofertar para eles, inserindo-os nas relações culturais, valorizando sua cultura e que existe um mundo diferente, não precisa se conformar como está, mas que se houver lutar esse mundo pode mudar, mas sem educação não será possível.
J. S.: O que mais te marcou nesses 23 anos de carreira?
M.A.S: Foram muitas situações, eu prestei concurso, depois fui trabalhar da Secretaria de Educação com a Terezinha Pessoni, que me ensino muito, houve também a Cleonice que foi, inclusive, minha professora no Magistério e depois minha supervisora, uma grande amiga que me ajudou, sempre nessa linha do pensar, que precisamos trabalhar com essas crianças para que elas possam ter capacidade de dialogar, de questionar. Foi todo um contexto que me marcou, foi trabalhar na zona rural, na Secretaria de Educação, trabalhar na Ampara... a sensação que eu tenho é que Deus foi me preparando... não teve um fato único, foi a somatória de experiências que me fizeram ter essa visão que eu tenho hoje da Educação. Estar na faculdade também foi uma experiência muito boa, era tudo muito novo e tive uma resposta tão boa das alunas e da própria faculdade. Em maio houve um evento promovido pela Marília Neves na faculdade e eu fui homenageada, foi como se tivesse sido coroada, foi um dia muito feliz dentro da educação de modo geral, porque representava meus 23 anos de profissão e tudo o que eu passei para chegar até aqui.
J. S.: E você nunca desistiu...
M.A.S: Não. Tinha parentes que não acreditavam nesse sonho e aquilo para mim era o mesmo que brigar comigo. Uma das coisas que eu acho muito perigosa é dizer que o sonho de uma criança não pode ser realizado. Se nos deparássemos com um menino que tinha o sonho de um dia ser presidente, um menino que tinha só a mãe, dez irmãos, que subiu em um pau-de-arara lá no Nordeste do Brasil, você iria dizer o quê para esse menino? Que ele é doido? Então é muito perigoso dizer para uma pessoa que os sonhos dela não são possíveis. Fernando Pessoa dizia em um de seus poemas: Deus quer, o homem sonha e a obra nasce. A partir do momento que você está sonhando, Deus tem uma missão para você e eu acredito muito nisto.
J. S.: Qual o balanço que você faz desses 47 anos de vida?
M.A.S: Não foi fácil, teve seus percalços, mas se eu tivesse que viver tudo novamente eu viveria pela pessoa que sou hoje. Acho que a gente nasce e quando tem que voltar para o outro lado, temos que estar melhores e a vida está melhorando a cada dia e mesmo as coisas que não foram tão boas me ensinaram muito: a ser mais humilde, a ser uma pessoa melhor, a olhar o outro com outra visão. De maneira geral as dores me ensinaram a ser uma pessoa melhor e as coisas boas que eu estava no caminho certo, a olhar o ser humano com amor, pensando nele como sempre tendo algo de bom a oferecer, e todo mundo tem uma coisa boa a nos oferecer de uma maneira ou de outra e nós precisamos investir nelas. Eu sou uma pessoa realizada profissionalmente e como pessoa, o que eu sonhei eu conquistei.