ELY VIEITEZ LISBOA

A minha pasárgada

Por: Ely VIeitez Lisboa | Categoria: Cultura | 26-11-2017 21:11 | 4368
Foto: Reprodução

Vou-me embora pra Pasárgada é um dos poemas mais famosos de Manuel Bandeira. Nele o poeta cria uma cidade utópica, onde ele é feliz, "é amigo do rei", realiza todos os sonhos impossíveis, tem saúde, alegria, drogas à vontade e diz: "Lá tenho a mulher que eu quero / Na cama que escolherei". O local é símbolo de liberdade e realização total.
Já se discutiu à exaustão se a arte copia a vida, ou o contrário. Minha experiência é interessante. Vivi quase a vida toda enjaulada em apartamentos, por praticidade ou segurança, sonhando com uma casa térrea, ampla e clara. Sabe-se que a literatura é catártica. Assim, como meu desejo parecia impossível, em meu romance epistolar Cartas a Cassandra, a heroína, quando começa a envelhecer, muda-se para um lugar silencioso, florido, com uma casa grande e branca, rodeada de verde. 
E então, não mais que de repente, por magia, a vida copiou a arte. Dois anos depois do lançamento do livro, eu morava em um local como o de minha heroína, rodeado de murta, com muito verde, grama, flores, piscina e cachorros: duas labradoras lindas, cor de chocolate, de belos olhos verdes. 
A vida mudou. Onde moro acontecem coisas inesperadas. As orquídeas florescem, as folhagens estão sempre frescas, a brisa brinca nos meus cabelos. Há pássaros em profusão. Um dia desses um tucano passou muito perto, voando tranqüilo. Até um macaquinho apareceu, fazendo micagens. 
Fiz amizade com um belo bem-te-vi, grande, colorido. Meses depois, ele trouxe a companheira e após, os dois filhotes. É bem verdade que desgraças acontecem: na semana passada, despertou em uma das minhas belas labradoras o instinto da caça. E ela surgiu com um dos meus bem-te-vis na boca, orgulhosa de sua presa. Tomou gosto e já estraçalhou uma pombinha. Só não matou um gambazinho, quando surgiu com ele na boca, o rabo pendurado para fora, porque salvamos o infeliz, arrancando-o dos dentes da fera. Não só os seres humanos são complexos e contraditórios. Lara, a caçadora, é uma doce criatura que brinca como uma criança e tem trejeitos de filhote.
Às vezes, na rede, lendo um bom livro, com minhas labradoras aos meus pés, olho para o céu lím-pido, as flores ao redor, a murta cor de esmeralda e sinto-me em minha Pasárgada. Aqui não sou amiga do rei, mas sou feliz, muito feliz. Serei eu, por acaso, a personagem de um livro de Deus?




(*) Ely Vieitez Lisboa é escritora.
E-mail: elyvieitez@uol.com.br