Estava eu embebida em meu trabalho, imersa na análise de um difícil texto literário, ignorando tudo ao redor, quando se deu o barulho seco e rápido, um trapejar de penas. Abri o vidro da janela e no beiral vi, atônita, o pássaro novo, meio filhote, adolescente de penas acinzentadas e marrons, olhinhos muito redondos, biquinho aberto. Olha-mo-nos com estranheza, eu, com a inesperada visita, ele me observando como possível inimiga. Precavido, ele se achegou de manso para mais perto da veneziana quase da sua cor (tropismo pelo mesmo matiz?) e ficou de lá, recolhido, arrepiado, olhando-me de soslaio. Perdi a noção da necessidade urgente de terminar meu trabalho, debrucei-me na janela e fiquei (quanto tempo? Como medir os minutos, durante as emoções?) tentando comunicar-me com a avezinha que viera do céu.
Na minha imaginação fértil eu já havia realizado o meu grande desejo: ter um pássaro sem gaiola, coabitando naquele canto de janela, comprando-lhe comida, afeiçoando-me a ele, ao menos até que crescesse e estivesse pronto para vida, rumo ao infinito.
Veio um seu companheiro, outro pássaro maior, de penas mais alvas, que conversou com ele, brigou, bicou-o várias vezes, induzindo-o a voar, a entregar-se ao azul do seu destino, ou ao menos enfrentar as atraentes árvores floridas. Mas meu companheirinho foi renitente, arrepiou-se mais ainda, encolheu-se, despachou o níveo colega emplu-mado. Também no reino dos pássaros há pressões e influências que mudam nosso destino. Quando apareceu o terceiro, este sagaz e convincente, empurrou meu passarozinho para fora do beiral e alteou-se ao céu, mostrando como ele devia agir. Parou-me o coração, em um baque, quando vi meu amigo cinzento tentar alçar voo, porque baixar num rasante poderia ser fatal! Criou coragem, reuniu todas suas forças, a habilidade e, elegantemente, pousou na árvore de flores amarelas, onde a comunidade alada já o esperava.
Melancólica alegria ao vê-lo salvo, porém sem mim, eu sem ele, o meu beiral vazio... Ficaram só as lições dos pequenos episódios mágicos que nos rodeiam: a determinação, as inter-relações entre o querer e o poder, a poesia e o colorido da vida, o saber que o pássaro é também uma criatura gregária, o reavivar na memória e o perceber pelos sentidos que o mundo vive nos dando recados.
Aquele foi um dia perdido para o trabalho, todavia aprendi mais uma lição de vida, fiquei metafísica, devaneando entre o concreto das evidências e a magia sutil de um episódio prenhe de mistério. Com as antenas agora muito mais aguçadas, líricas hipóteses povoaram minha cabeça. Foi Cassiano Ricardo, profeta, vidente, porque poeta, que veio com a mais rica resposta, possibilidade que meu coração, ungido de alegria, acatou com a certeza dos iniciados:
"É impossível não saibas que o pássaro,
caído em teu quarto por um vão da janela,
era um recado do meu pensamento".
(*) Ely Vieitez Lisboa é escritora.
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