A volta ao passado chegou como um bicho sem convite, penetra inesperado, visto que quase sempre ele não é bem-vindo. Voltar para quê? A vida é o presente, a luta renhida, o agora, o vivendo. Já não chegam os problemas atuais, que todos têm? Lembro-me do argumento de Guimarães Rosa, denunciando por um de seus personagens, que a gente faz tudo para organizar a coisa aqui embaixo, mas parece que alguém trapaceia e muda tudo, lá em cima...
Como Advogada do Diabo (conceito usado por Roma, nos processos de canonização), continuo afirmando a total inutilidade de trazer o passado de volta, relembrar os pretensos fatos acontecidos, visto que toda incursão ao antes, ao que se viveu provavelmente é reconstituição, lembrança, interpretação, portanto, ficção. Desta vez, todavia, fui pega de surpresa, como isca inocente, involuntária, vítima.
Primeiro, foi o convite afável para ouvir algumas músicas lindas, famosas, com os maiores intérpretes das décadas de cinquenta ou sessenta, melodias, letras, cantores e cantoras inesquecíveis. Assim, lá fiquei eu, deliciada, confesso, ouvindo melodias únicas, artistas notáveis que punham a alma nas interpretações. De repente se passaram duas horas, como se fossem minutos. Letras como As rosas não falam, de Cartola, Chão de estrelas, de Sílvio Caldas, Meu último Desejo, do notável Noel Rosa, o incrível repertório do excelente Nelson Gonçalves, as músicas de Dolores Duran, letras lindíssimas do nosso Chico Buarque. Deste último, temos Construção, de 1971, em plena época da Ditadura. São de domínio público todos os problemas que Chico Buarque enfrentou, com suas denúncias metafóricas e inteligentes, críticas ao regime político execrável.
Muitas análises já foram feitas de Construção, texto, que é uma obra-prima. Na realidade, ele é único, pois traz características ímpares. É um poema da Poesia-práxis. Ora, Mário Chamie é o poeta mais expressivo dessa estética literária. A partir de 1961 começou a adotar a palavra como organismo vivo gerador de novos organismos, ou seja, de outras palavras. Surge como dissidência da Poesia Concreta. A Poesia-práxis valoriza o ritmo, a palavra, o verso, as rimas. Na citada letra de Chico, todos os versos terminam em proparoxítonas, os termos se substituem em uma repetição cadenciada, com conceitos modificados semântica e criativamente. Há muitas outras letras belíssimas de CB, sem dúvida, um dos melhores letristas da MPB. Enfatize-se Valsinha, que é um verdadeiro conto, com a temática do renascimento do amor e com um final surrealista.
É isto! As músicas foram como um passaporte mágico que me levaram, de início, a uma fuga, episódios poéticos do passado. De repente, contudo, a lucidez chamou-me à razão. Comecei a analisar o que antes parecia muito real e descobri algo terrível, meio assustador. Naqueles momentos, na juventude, um enfoque falso doirava a realidade. E o hoje é sonho ou pesadelo? Desliguei a música e fui trabalhar.
(*) Ely Vieitez Lisboa é escritora.
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