ELY VIEITEZ LISBOA

De pássaros e de homens

Por: Ely VIeitez Lisboa | Categoria: Cultura | 17-06-2017 10:06 | 1242
Foto: Reprodução

Cada dia entendo menos o mundo. A pombinha fez o ninho bem em cima do carro. Despreocupada e dona do pedaço, não se preocupou com a sujeira toda que fez sobre o veículo. Quando meu marido descobriu o fato, cuidadosamente aconchegou as palhinhas sobre uma pilastra da garagem, cuidou de escolher o lugar abrigado do vento, pois lá estavam dois filhotinhos, com os bicos abertos, pedindo comida. Ficou muito preocupado. A mãe aceitaria a mudança? Abandonaria os filhinhos mal empenados? 
Logo foi uma alegria. A mãe sábia aceitou o novo local, aninhou sobre os filhos e lá ficou a nos olhar de olhitos muito abertos e atentos.  Mas desgraças acontecem. Não se sabe como nem o porquê, um dia depois, um dos filhotes apareceu morto, no chão. É algo triste e melancólico ver um filhotinho de pássaro morto, todo abandono, fragilidade. Lembrei-me de um acontecimento macabro, em Ribeirão Preto, após um vendaval. De manhã, indo à Igreja, as ruas, os passeios estavam coalhados de cadáveres de vários tipos de passarinhos, um tapete de pequenas aves, retrato trágico da efemeridade da vida. Não seremos nós pobres pássaros à mercê de possível vendaval divino? 
Quanta tristeza! Embrulhei o filhotinho morto em um papel alumínio, para que ele tivesse uma mortalha bonita, enterrei-o. Felizmente, o outro filhote escapou. Empenado, arisco, deu seus primeiros voos e alçou ao céu, em busca da liberdade. O mundo pareceu mais alegre e naquela tarde, até o mico estrela, que raramente vem por aqui, apareceu, pegou rápido os dois pedaços de banana que deixamos para ele e saiu moleque, alegre, com seu longo rabo dançante.
Naquela mesma noite, no jornal televisivo, foram veiculadas só notícias brutais e macabras. Uma imensa tristeza abateu sobre meu coração. Senti-me pequena e mesquinha, porque sofri com a morte de um filhote de passarinho. E, mais do que nunca, constatei que o ser humano é complexo e a vida, um labirinto com inúmeras veredas repletas de abismos. 
Estes dias o céu está azul, a brisa doce. Todavia, a maneira de agir dos seres humanos não condiz com isto. Parece um eterno agosto, triste, aziago. Sempre me impressionou por que os homens não aprendem com a Natureza que segue leis lógicas, coerentes. Ao contrário, o pretenso Rei do Universo, o propalado animal racional muitas vezes é um monstro, ou frágil, controverso, com atitudes inexplicáveis. Lembro-me de uns versos do famoso poema de Thiago de Mello, Estatutos do Homem. São lições utópicas que só um grande poeta poderia dar. No Artigo IV, ele diz: "Fica decretado que o homem não precisará nunca duvidar do homem. Que o homem confiará no homem como a palmeira confia no vento, como o vento confia no ar, como o ar confia no campo azul do céu". O poema todo é uma mensagem de beleza, de paz e de lirismo.
Realmente foi apenas um poeta sonhador que escreveu o magnífico Código. Deus preferiu criar o Homem inteligente e capaz, mas deu-lhe o livre arbítrio. Aconteceu o que aconteceu. Sempre achei que esta dádiva divina foi um presente de grego.




(*) Ely Vieitez Lisboa é escritora
E-mail: elyvieitez@uol.com.br