CRÔNICA DE UMA CIDADE

Luiz Pimenta Neves Jr. 1994

Por: Redação | Categoria: Cidades | 26-07-2017 18:07 | 3073
Foto: Reprodução

ANTIGAMENTE
... não! A cidadezinha onde eu nasci não era como as outras. Havia na praça principal duas igrejas. Uma de cada lado. As outras cidades que mais tarde conheci tinham sempre uma praça com apenas uma igreja.
Pois na minha, não. Duas na mesma praça. Uma era a matriz, toda feita de granito cinza e com uma torre central. A outra, ficava do lado oposto da praça. Era branca, pequena, com portas e janelas pintadas de azul claro e sua única torre ficava na lateral.
A praça tinha jardins e árvores. Ipês, principalmente. No centro havia um coreto hexagonal, feito de alvenaria. Ali, a banda tocava, animadamente, todos os domingos e feriados. Ao redor da praça havia casas. Quase todas brancas mas diferentes entre si pelas cores das janelas e portais.
Aos domingos o padre que celebrava a missa das seis horas da manhã na igreja pequena também celebrava às nove na matriz.
As pessoas mais pobres, de menos posses, iam à missa das seis. Depois da missa se dirigiam para as casas onde trabalhavam a fim de preparar e servir o café aos seus patrões e familiares, frequentadores da missa das nove.
Lá pelas oito horas, enquanto os moradores das casas da praça iam despertando um a um, a mesa já estava servida, como mágica. Tinha leite, geleia, bolo de fubá, broa, manteiga, queijo... Como era bom tomar aquele café. Só aqueles que iam comungar não podiam se servir. Tinham que ficar em jejum para receber o Corpo de Deus.
Depois, todos se aprontavam, vestiam as melhores roupas e às nove horas, já estavam na matriz. Cada família se sentava em um mesmo banco. O pai, a mãe e os filhos. As meninas de vestidos brancos e bordados com grandes laços de fita na cabeça. Os meninos de ternos de calças curtas, gravatas presas com elástico, meias brancas e sapatos de verniz.
As famílias mais importantes se assentavam nos bancos da frente, mais próximos do vigário. As demais famílias ficavam no fundo da igreja. Cumprimentos eram trocados antes do início da celebração. Depois, o padre começava a missa e para as crianças começava o sacrifício. 
A única distração era acompanhar os voos rasantes das andorinhas dentro da nave da igreja. Ao final, o alívio. Brincar na praça. Bandos de andorinhas e crianças. Os adolescentes passeavam, trocando olhares de amor eterno. Os homens trocavam ideias em pequenos agrupamentos sobre os últimos acontecimentos. As mulheres voltavam para dar ordens na preparação do almoço. Os empregados trabalhavam calados.
As pessoas mais ricas da cidade moravam nas casas ao redor da praça. As mais pobres tinham suas casas longe dali. Era bom morar na praça. Tudo estava lá: a igreja, a farmácia, a sorveteria, a loja de roupas, a venda... Tudo que acontecia também era lá: a festa do Santo padroeiro da cidade, a banda de música aos domingos, as paradas do dia 7 de Setembro, o passeio depois da missa... Quem morava lá, tinha tudo e via tudo. Quem não morava, dançava na praça nos dias da festa de São Benedito, padroeiro da igrejinha branca.
Apesar de morarem longe, todos vinham dançar o Congado. Os moradores da praça assistiam, com muito interesse, a festa colorida com papel crepom. Os dançarinos se esmeravam toda vez que passavam em frente à casa de alguém mais importante e, ao receber do morador o aceno de aprovação com a cabeça, era uma alegria sem fim.




A ESTRADA
Podia-se dizer que a cidade era bonita, seus habitantes alegres e tudo vivia em harmonia. Era uma pena que tanta formosura e riqueza ficassem tão isoladas de outras cidades. Não existiam estradas. Quem quisesse visitar alguém ou vender e comprar alguma coisa, enfrentava sacrificadas viagens em trilhas, em cima de lombos de burros. Poucos tinham tamanha coragem.
Um dia o Governador do Estado anunciou que iria visitar a cidade. Os coronéis se reuniram e decidiram pedir a construção de uma estrada que possibilitasse o ir e vir à vontade. O Coronel Chiquinho ficou encarregado de recebê-lo em sua casa para tomar o melhor chá inglês e pedir a concessão do empreendimento que facilitaria a vida de todos. O dia chegou. O Governador foi saudado com discursos, banda e foguetes. Após a cerimônia, o Coronel se aproximou e disse:
- Sr. Governador, vão “p’u” chá?
O Governador, não entendendo a solicitação, pediu esclarecimentos:
- Puxar o que, Coronel?
Foi necessário que outras pessoas intercedessem para fazê-lo entender que ele estava sendo convidado para tomar um chá na casa do Coronel.
Depois da promessa de muitos votos na próxima eleição, o Governador garantiu a abertura da estrada que ligaria a cidade a muitas outras.
O dia da inauguração foi uma festa. A estrada agora podia trazer e levar pessoas que há muito tempo não se viam. Chegariam roupas, bicicletas, móveis e importados. Seriam levados carne, leite, grãos, verduras e frutas. Com tudo isto os habitantes da cidade teriam mais conforto e ficariam mais ricos. A estrada era boa.




A CIDADE DEPOIS DA ESTRADA
Junto com a estrada vieram as “jardineiras” que transportavam as pessoas, as camionetes e pequenos caminhões que levavam todo tipo de carga. Quando chegavam, ficavam estacionados na praça. Tudo estava lá: as casas que recebiam os visitantes e as lojas e armazéns que negociavam com as cargas. A praça ficava lotada. Parecia um mercado. Ficou suja e feia. Nos dias da festa do Santo padroeiro, nem se fala, era uma confusão só: pessoas, caminhões, procissão, caixotes, tambores, papel crepom.
Aquilo não era mais possível. A estrada era boa. Trouxe mais conforto e mais riqueza. A cidade já era conhecida pelas outras como “a princesinha do oeste”. Seus produtos eram apreciados por todos que compravam e era um prazer vender para as pessoas que possuíam com que pagar, mas, conviver com aquela confusão, bem no centro, não era mais possível.
Definitivamente, a cidade precisava de uma rodoviária. O problema era saber onde poderia ser construída. Deveria ser perto da praça pois as pessoas que viajavam e negociavam moravam ali. No entanto, não havia por perto nenhum espaço para qualquer construção e ninguém queria dispor de sua própria casa para tal finalidade.
Foi em uma das reuniões, entre as pessoas mais importantes, que o Coronel Alvarenga deu a ideia:
- É só derrubar a igreja de São Benedito e construir a rodoviária. A missa das seis poderia ser celebrada na matriz.
Todos, apesar de não frequentarem a igreja de São Benedito, aprovaram a ideia entusiasticamente.
O padre quando foi comunicado, resistiu. Mas, quando o Coronel Antônio, rico comerciante, ofereceu uma doação para reformar a casa paroquial, o padre mudou de ideia.
Demoliram a igrejinha branca com portas e janelas azuis. O Coronel Alvarenga ficou encarregado das obras. Após dez meses de trabalho, duro e constante, a rodoviária ficou pronta.




A RIQUEZA E O PROGRESSO
Em uma escola a professora lia para os alunos uma poesia sobre a Inconfidência Mineira: 
“ Agora são tempos de ouro.
Os de sangue vêm depois.
Vêm algemas, vêm sentenças, 
Vêm cordas e cadafalsos... “ 1 
Enquanto isto, a cidade trabalhava e progredia. A rodoviária não havia solucionado a movimentação constante e desordenada na praça.  A verdadeira consequência de sua construção foi a de trazer mais gente e mais mercadorias para fazer negócios. A praça continuou suja, cheia de veículos e gente. Os donos dos negócios ficavam cada vez mais ricos e muitos empregos foram criados para a população em geral. No entanto, os moradores da praça se queixavam. Já não era como antigamente. O ruído, o trânsito, pessoas desconhecidas, não deixavam ninguém sossegado.
Além disto, suas famílias haviam crescido. Depois dos filhos, vieram os netos. As casas da praça ficaram pequenas e mal localizadas para suas necessidades.
As pessoas que não moravam na praça também tiveram filhos e netos, as famílias cresceram. Agora não era mais possível conhecer todos eles. Eram muitos. Apenas alguns eram populares devido a uma habilidade ou característica extraordinária. Este era o caso do Chico Risada, criador de porcos, que tocava tambor e dançava no Congado. Em dias comuns, quando alguém encontrava com ele na rua ia logo pedindo:
- Ô Chico! Dá uma risada.
Imediatamente ele abria a boca desdentada em uma risada rouca, alta e gostosa. Quem pedia a risada, acabava também rindo. Chico passou a vida criando porcos para vender e distribuindo alegria de graça. Em toda festa do padroeiro lá estava ele, enfeitado com fitas coloridas e dançando. Todos o conheciam e ele ficava  orgulhoso, mas os seus companheiros ficavam cada vez mais anônimos.




MELHOR MUDAR
A única solução que restava para os moradores da praça era a de se mudar para os arredores. Eram muitos os comerciantes que estavam interessados “no ponto” de suas casas, localizadas bem no centro comercial. Com o dinheiro da venda podia-se comprar por pouco um bom lote na periferia e ali construir uma bela casa. O problema seria a vizinhança que não estaria no mesmo nível social.
Foi por esta época que Rinaldo, forasteiro  empreendedor, percebeu esta urgência e comprou  muitas casas dos moradores da periferia que por sua vez faziam um lucrativo negócio, em troca de um quase nada que haviam pago, quando construíram suas casas. Foi desta forma que surgiu o loteamento do bairro mais chique da cidade: o Bela Vista. Agora, sim. Os moradores da praça poderiam se mudar do centro para a periferia, conservando o bom nível da vizinhança. Quase todos  venderam suas casas ou as trocaram por lotes e lindas mansões surgiram.
Os antigos moradores do loteamento construíram suas novas casas em lugares ainda mais afastados. Mas isto não consistia um problema porque foram instaladas linhas de ônibus que levavam e traziam as pessoas até ao centro ou até ao novo bairro recém-criado. Desta forma, podiam continuar trabalhando na casa de seus patrões e se divertindo no centro.
Nos dias das festas de São Benedito eram montadas na praça modernas arquibancadas de estruturas de aço para que todos (inclusive os moradores do bairro Bela Vista) pudessem ver o Congado desfilar. Uma comissão de juízes era escolhida entre as pessoas mais representativas da cidade. Cada terno * se esforçava mais do que o outro para poder ser o melhor e vencer. Novos artifícios eram criados, ano a ano, para a maior beleza e eficiência das apresentações.
As fitas de papel crepom foram substituídas por tiras de plásticos coloridos, por serem estas mais resistentes. Um sistema de som foi instalado para que todos ouvissem os pronunciamentos.
O vencedor recebia orgulhoso, das mãos do prefeito, a miniatura da bandeira de São Benedito cravada em um pedestal de granito e a erguia entre as mãos para exibi-la com justa alegria. Todos os que dançavam no Congado eram desconhecidos pela massa dos espectadores. Não havia mais Chicos Risada. Mas, em compensação, a festa ganhara em brilhantismo e formosura, semelhante àquelas das grandes cidades.
A cidade continuava mudando. A rodoviária que fôra construída antigamente não comportava mais a movimentação de tantos ônibus, pessoas e cargas. A construção de uma nova, um pouco mais afastada do centro, fôra imperiosa. Agora, o problema era saber o que fazer com o inútil prédio da antiga rodoviária que a cada dia que passava ficava  mais decadente e servia apenas de abrigo para os mendigos sem teto.




A CIDADE DEPOIS DA MUDANÇA
Depois que as casas da praça foram vendidas, quase todas foram demolidas e em seus lugares foram construídos bancos, novas casas comerciais e dois grandes edifícios, maiores que a matriz, foram construídos ao seu lado. Rinaldo era o dono deste progressista empreendimento. Ao longe, os moradores da cidade olhavam orgulhosos os grandes espigões. Finalmente, os arranha-céus haviam chegado na cidade. Todos queriam comprar ali  os seus apartamentos e foi com muita facilidade que foram vendidos. Rinaldo ficou rico, ganhou uma fortuna.
A praça foi inteiramente remodelada. Ao invés de árvores, bonitas estruturas de cimento. O coreto central ganhou uma aparência de um amplo quiosque japonês e um belo relógio digital foi plantado ao seu lado.
O bairro chique da cidade fez sua própria praça. O Coronel Alvarenga, que lá residia, começou a cismar que Deus iria castigá-lo por ter demolido a igreja de São Benedito. Não parava de falar a todos que os céus iriam castigá-lo. Acabou construindo uma réplica da igreja em um dos bairros afastados da cidade. Em toda festa de Congado, lá ia o arrependido Coronel, vestido de rei e descalço, pagando promessa com medo da ira Divina.
Os outros moradores do bairro Bela Vista, para atender às necessidades de estudos dos filhos e netos, devagar foram se mudando para as grandes capitais. Deixavam empregados tomando conta de seus negócios e iam à procura de vida melhor.
Os empregados continuavam na cidade, preocupados em gerar bons resultados. Os patrões, quando voltavam em épocas de férias, diziam aos seus descendentes, entre um muxoxo e outro:
- Esta cidade não é mais como antigamente. Alguma coisa aconteceu. A praça não é a mesma. Não existe mais o Chico Risada...
Os filhos perguntavam:
- Chico Risada? Por que se chamava assim?
Os pais nostalgicamente iniciavam a explicação...




AQUI E AGORA
Hoje eu não posso dizer que a cidade onde eu nasci é diferente das demais. Ela é como todas as outras. O seu perfil, visto ao longe, mostra muitos edifícios altos que escondem sua graciosa ingenuidade caipira.
A praça ficou cada vez menor e mal consegue comportar a grande quantidade de carros que fluem para lá. Quase todas as suas antigas casas foram demolidas e substituídas por outras, tão diferentes.
Quando vou por aquelas bandas, sinto falta da igrejinha de São Benedito. Às vezes chego a pensar que ela era a alma da cidade. Quando o Coronel Alvarenga morreu de doença feia na cabeça, todos comentavam que aquilo havia sido castigo dos céus. Os temores do Coronel realizaram-se.
Da antiga praça, só ficou a matriz. Escondida pelos prédios, esperando a sua vez. Ninguém ousa tocá-la: Deus castiga! Ela é um símbolo do poder que um dia vigorou por lá. Condenada à mais dura solidão, lá está ela, como um velho boi moribundo, mugindo no pasto descampado, sem rumo, ao sol quente do meio-dia...




(Footnotes)