Que os puristas me perdoem, mas quando penso na minha doce Eugênia Vilhena de Morais, o que me vem à mente é a expressão "mulher avant la lettre". Por quê? Em uma época quando professora era alguém formal, sisuda e exigente, inacessível e seguidora de regras, Eugênia diferia de tudo isto. Amiga, doce, inteligente, sensível, com um sorriso de jasmim.
Ao vir de Minas para Ribeirão Preto, em 1948, matriculei-me no Colégio Santa Úrsula. Eugênia era minha professora de português, na então sexta-série ginasial. Logo notei algo inusitado: ela se preocupava em descobrir no que o aluno era bom. Quando viu que eu já escrevia bem, perguntou-me se eu gostava de ler. Entusiasmada, respondi que sim. Ela me franqueou sua rica biblioteca pessoal, para que eu lesse o que quisesse. Foi o maior presente que já recebi. Após, eu passava quase todas as tardes em sua casa, lendo obras da literatura brasileira.
Passando casualmente pela rua Abílio Sampaio , na Vila Virgínia, vi um prédio em final de construção, lindo, branco como um cisne. Na época, era tudo verde, o gramado a perder de vista. Defronte, no campo aberto, pastavam vacas, bucolicamente. Perguntei o que seria ali. A Escola Estadual Prof.ª Eugênia Vilhena de Morais, disseram. Encantada e comovida, prometi-me intimamente: Juro que um dia darei aulas nesta escola! Quando me efetivei no Estado, não abandonei o sonho, até conseguir realizá-lo e de maneira insólita. Durante a escolha, com dezoito professores à minha frente, vagou o Eugênia. Atordoada, fiz um pedido, quase uma oração: "Eugênia, quero o seu Colégio!". Os dezessete professores subiram, escolheram todas as vagas, menos a de Ribeirão. É como se alguém ocultasse a opção. O décimo oitavo candidato escolheu o meu colégio. Senti morrer! Ele desceu a escada, pensou e voltou, cancelando sua escolha! Quando assinei meu novo cargo, eu mal continha a alegria. No dia seguinte, fui levar flores no túmulo de minha querida Eugênia, no Cemitério da Saudade.
Lecionei no MEU Colégio, vinte anos. Na Sala dos Professores havia um grande retrato de Eugênia. Quando eu lá entrava, intimamente falava com ela, confidenciando coisas, procurando seu exemplo de mestra. Lá me aposentei. Um dia, visitando minha querida Casa de Ensino, fui até à Biblioteca, que tinha meu nome. A funcionária que limpava o chão, mostrou o meu retrato e disse-me: Está vendo esta professora? Ela não morreu ainda não. Tem um nome difícil, né? Sabe? Dizem que era meio louca... Tinha sempre um carro branco, chegava uma hora mais cedo para as aulas. Ninguém pegava sua vaga no estacionamento. Depois ela ia para a Sala dos Professores e conversava com o retrato de Dona Eugênia... Onde já se viu?
Nada lhe respondi. Sorri e fui embora, com meus pensamentos. Tudo era verdade. Segui a vida toda o exemplo da minha Eugênia, mas sei que jamais atingi sua grandeza de criatura assinalada.
(*) Ely Vieitez Lisboa é escritora
E-mail: elyvieitez@uol.com.brs