No domingo (4/11) aconteceu em todo o Brasil a aplicação da primeira fase do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), com provas sobre linguagens, ciências humanas e a redação, que trouxe como o tema a "manipulação do comportamento do usuário pelo controle de dados na internet". Para alguns especialistas, não foi um tema que surpreendeu e já era esperado, porém se apresentou como um desafio e bastante perigoso àqueles que se prenderam somente a uma questão que foi bastante discutida este ano, principalmente no período eleitoral: as fake news.
Para a doutora em Linguística e docente no curso de Letras da Universidade do Estado de Minas Gerais em Passos (UEMG/Passos), Michelle Aparecida Lopes, a temática era uma das apostas dos cursinhos e professores de terceiro ano do Ensino Médio, por ser bastante atual e o Enem possuir a característica de colocar em discussão temas que "estão aí para serem pensados e repensados pela sociedade, foi assim com a lei seca, com a violência contra as mulheres e também com os deficientes auditivos, alguns dos temas dos anos anteriores", explica.
Michelle destaca que o candidato precisou saber lidar com um tema que não atingia uma especificidade pontual, ao contrário das temáticas das redações de exames anteriores "Creio que a dificuldade foi justamente definir com exatidão o que seria abordado, já que, quando um tema dá margem para várias discussões, é mais fácil desviar-se dele e ocorrer o que chamamos de "tangenciamento do tema", ou seja, o candidato apenas cita o tema, sem desenvolver discussão aprofundada sobre nenhuma de suas possíveis abordagens. Por essa perspectiva, não considero que o tema tenha sido fácil, justamente por permitir diversas leituras, sendo que em algumas delas o candidato poderia distanciar-se das discussões que a banca considera mais relevantes", aponta.
Lopes acredita que o tema pouco teve a ver com as famosas "fake news" e sua relação com as eleições de 2018. "Partindo do princípio que o tema da redação já está pronto desde o mês de junho, mais ou menos - caso contrário, não há tempo hábil para a impressão e checagem das provas -, acredito que banca o propôs para discutir o comportamento da sociedade advindo dos dados que todos nós disponibilizamos na rede diariamente; por isso, uma abordagem direcionada para a política, ou as últimas eleições, acredito que não será vista com bons olhos", pondera.
Segundo Michelle, quando ela leu os textos de apoio, percebeu que em dois deles citaram-se os "algoritmos" que, conforme o texto I trazia, "constrói um universo adequado e complacente com o perfil do consumidor". "Desse modo, o candidato poderia direcionar sua argumentação para como a rede exerce o controle sobre o que ela acredita que gostamos ou não, criando assim a falsa ideia de que temos liberdade de escolha, quando na verdade, apenas nos é oferecido aquilo que mais já demonstramos ter tendência para consumir", avalia.
Ainda, de acordo com Michelle, a discussão proposta pelo Enem é necessária e deve começar desde cedo. "Justamente por isso o Enem pode ter colocado o assunto em discussão, pois jovens que não têm a percepção de que podem ser manipulados pelos algori-tmos de sites como Instagram, Facebook, Twitter, entre tantos outros, pode acabar vivendo em uma bolha, que só lhe permite enxergar as opiniões que já são as suas. O tema faz todos nós pensarmos em como nosso consumo, nossas escolhas, nossas opiniões vêm sendo tomadas como verdades universais, quando, na verdade, sempre há outros pontos de vista que devem ser discutidos, sempre há outros produtos que devem ser experimentados, sempre há outras músicas e ritmos que devemos ouvir, até mesmo para checarmos se nossas escolhas são, de fato, nossas", destaca.
A bacharela, mestre e doutoranda em Linguística pela UFSCar e professora de redação do Colégio Paula Fras-sinetti, Alline Rufo, também concorda que o tema da redação do Enem é pertinente na atualidade, pois questiona o uso que os próprios alunos fazem da internet, no sentido de fazê-lo pensar sobre como a internet funciona com base em seus algoritmos. "Penso que os participantes do Enem desse ano, que fazem parte de uma geração constantemente co-nectada na internet vão se sair muito bem", avalia.
Segundo destaca a especialista, para se saber que tipo de discussão que se poderia espera que o aluno fizesse, inicialmente era preciso analisar a coletânea de textos motivadores, que este ano trouxe como base o funcionamento do algoritmo de filtragem de dados na internet e sua disseminação.
"Dessa forma o esperado é que os alunos argumentassem sobre o uso da internet, a manipulação e controle de dados por algumas instituições. Um exemplo recente foi o caso de manipulação dos dados de usuários do Facebook, ao ter um perfil nas redes sociais, seus dados são utilizados pela mesma para gerar indicações de amigos ou propagandas, criando uma rede de informações relacionadas ao seu interesse. No inicio desse ano, em março, mais de 50 milhões de pessoas, usuários do Facebook, tiveram seus dados utilizados sem consentimento pela empresa Cambridge Analytca para fazer propaganda", aponta.
ABORDAGENS
De acordo com Rufo, o tema poderia ser abordado de diversas maneiras. "De uma forma geral, podemos pensar em uma contextualização histórica, como o surgimento da internet no auge da guerra fria ou a globalização, uma argumentação baseada no processo de geração de dados pelos usuários durante a utilização da internet, principalmente as redes sociais e a manipulação desses dados por instituições e corporações. Já na base teórica podemos pensar em alguns pensadores, como no filósofo francês Michel Foucault a respeito do conceito de poder dentro da sociedade; o filósofo e sociólogo alemão Karl Marx com o fetichismo da mercadoria, pensando em como seus dados na internet se tornam uma mercadoria a ser vendida; o conceito de indústria cultural dos filósofos e sociólogos alemães Theodor Adorno e Max Horkheimer, ou mesmo, Émile Durkheim e a estratifica-ção social", sugere.
Ainda, segundo a professora, na intervenção, parte importante das redações do Enem e que deve ser construída sobre ações concretas que podem ser aplicadas na sociedade, no tema em questão, apesar da internet há alguns anos fazer parte do nosso cotidiano, sabe-se muito pouco de seu funcionamento e como utiliza-la. "Dessa maneira, a intervenção pode caminhar no sentido de medidas educacionais para sua compreensão e utilização. Outro viés, são a leis mais rígidas sobre os dados que corpora-ções tem acesso, primando pela privacidade de seus usuários. É indispensável que a intervenção esteja relacionada com a discussão, feita pelo participante, no restante do texto. O importante para o aluno é compreender que independente do tema, desde que ele saiba estruturar e argumentar de forma crítica sobre diferentes problemáticas ele fará uma boa redação", destaca.
FAKE NEWS?
Conforme Alline, a proposta é muito relevante na atualidade e muitos cursinhos online e presenciais já vinham apostando em propostas que foquem na tecnologia e seu uso há alguns anos. Assim, a proposta do Enem não foi surpresa para muitos. "O vestibular da UNICAMP para ingressos em 2018 trabalhou o tema de fake News, no ano passado, focando nas eleições do Donalt Trump e a utilização dessas na sua campanha", aponta.
Segundo ela, o tema da redação do Enem aborda a manipulação de dados e seria possível, sim, discutir a fake News, mas no sentido em que as informações que podem chegar para um usuário podem ser notícias de fontes não confiáveis e que não caracterizam a realidade.
"Muitos usuários de redes nem sequer abrem as notícias que recebem apara averiguar se o site que a publicou é confiável, a data e autor dessas. Dessa forma, eles são manipulados por informações que chegam de fontes desconhecidas sobre diferentes assuntos. O que tem se intensificado nos últimos anos. Se o aluno falar apenas sobre as fake news ele não abordará o tema de forma completa, mas pode sim utiliza-las como dados para os seus argumentos", completa.