ACORDO ORTOGRÁFICO

Ter ou não ter hífen, eis a questão!

Reflexões sobre o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa
Por: João Oliveira | Categoria: Educação | 24-02-2019 22:03 | 4999
Foto: Reprodução

Por Michelle Lopes 

Em 2019, o mais recente "Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa" completa uma década de implantação e também de muita polêmica. Esse acordo desencadeou opiniões favoráveis e adversas não apenas entre os estudiosos da língua - linguistas, filólogos e literatos -, como também entre professores, políticos dirigentes dos países envolvidos nele e todos os falantes do português. O "Acordo Ortográfico" suscitou, e ainda suscita muita discussão e debate, mesmo após esses dez anos.

A história nos ensina que Portugal, tendo sido uma potência do período das grandes navegações, espalhou a língua de seu povo por mais de um continente. Por isso, no mundo contemporâneo há nove países lusófonos, ou seja, aqueles cuja língua oficial é o português: Portugal, Brasil, Guiné-Bissau, Angola, Cabo Verde, Moçambique, Timor Leste, São Tomé e Príncipe e Guiné Equatorial. Com a língua portuguesa espalhada pelo mundo, talvez fique mais fácil compreendermos que uma unidade linguística desse idioma é uma verdadeira utopia. Isso porque, ao entrar em contato com as línguas dos países colonizados, o português não escapou - e não escaparia - das influências advindas desse convívio.

O "Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa" faz dez anos em 2019, já que entrou em vigor em 2009, contudo, antes disso houve um longo processo que se estendeu por quase duas décadas, além de já ter havido outras tentativas, anteriores a ele, de se unificar a língua portuguesa. Na verdade, o acordo em vigor foi assinado, pela grande maioria dos países lusófonos e inclusive pelo Brasil, em 16 de dezembro de 1990. Alguns poderiam se perguntar: por que demorou tanto para se tornar oficial? A resposta não é difícil: porque, apesar de se tratar de um acordo, não era da vontade de todos os países envolvidos, unificar a ortografia do idioma.

Nos anos que se seguiram após a assinatura, Portugal, Brasil e os demais países discutiram veemente a necessidade real de tal acordo. Para alguns países, assinar o acordo parecia abrir mão de algumas particularidades de sua herança cultural, visto que as muitas variantes da língua carregam marcas históricas, folclóricas e de tradição. Isso quer dizer que os mais resistentes acreditavam que a unificação ortográfica pudesse exterminar as particularidades do idioma típicas de seu país. O Brasil assinou o Acordo já em 1990 por acreditar que a unificação da norma escrita da língua portuguesa traria mais benefícios que dificuldades. De certa forma, isso é verdadeiro, pois a unificação da norma escrita poderia diminuir as divergências de compreensão entre os falantes dos nove países e isso facilitaria, por exemplo, as negociações entre eles. 

Por aqui, o Acordo Ortográfico passou a valer em 2009. Nos seis anos seguintes, ocorreu a fase da transição, na qual conviveram a ortografia anterior e a ortografia baseada nas mudanças do acordo. Esse período de transição foi útil tanto para que os falantes da língua pudessem conhecer e se apropriar das mudanças, quanto para que editoras e veículos de comunicação pudessem se adaptar à "nova" ortografia. Durante a fase da transição, podemos considerar que tenham ocorrido alguns transtornos, já que a vigência de duas normas-padrão da mesma língua causou incertezas e dúvidas entre os falantes. Por exemplo, qualquer um de nós que fosse prestar um concurso público, deveria observar pontualmente se o edital se submetia ao "novo" acordo ou não, caso contrário, poderíamos errar questões referentes à ortografia que até bem pouco fossem de nosso total domínio. Durante todo o período de transição, muitas palestras tiveram como tema o "Acordo", sempre na tentativa de esclarecer aos falantes as principais mudanças decorrentes dele.

Inicialmente, a fase da transição deveria durar até 2015, mas em 2012, a implementação definitiva do "Acordo" foi adiada para 31 de dezembro de 2016 e, então, a partir de primeiro de janeiro de 2017, a ortografia oficial válida em todo território nacional passou a ser a instituída pelo "Acordo Ortográfico". Isso quer dizer que todo falante do português deve ter em mente as alterações promovidas por esse acordo, como por exemplo, saber que a escrita oficial do nome daquele eletrodomés-tico que usamos para esquentar comida em casa é micro-ondas, e não mais microondas; que a palavra linguiça não tem mais trema; que a palavra ideia deixou de ser acentuada e que as letras "k", "w" e "y" pertencem oficialmente ao alfabeto português. (Antes, não pertenciam? Oficialmente não!). Além de ter em mente as mudanças, é preciso também aplicá-las no texto escrito, cuja regência se dá sempre pela norma-padrão da língua, por isso, usar a ortografia correspondente à norma vigente é essencial.

A realidade é que nós não podemos recusar o "Acordo Ortográfico", porque além de ele já ser oficial, também nos ajuda a pensar sobre questões importantes dentro da língua e para a língua. A primeira delas é o fato de a língua ser um fenômeno social da linguagem e, sendo assim, pertence a todos os seus falantes. Por isso mesmo, as manifestações de distintas variantes dentro de uma mesma língua, não empobrece o idioma, ao contrário, só faz enriquecê-lo. Por outro lado, sendo a língua social, é bom que haja uma norma-padrão que possa reger a escrita dessa língua; o uso dessa norma-padrão pode diminuir divergências de interpretação. É bom ponderarmos que a existência de uma norma-padrão que rege a escrita de uma língua não exclui, tampouco pode impedir, a manifestação das diferentes variantes dessa língua. 

Outra questão que as discussões sobre o "Acordo Ortográfico" deixam brecha para ser discutida é a mudança de uma língua ao longo do tempo e da história. De acordo com Cagliari, "a linguagem é um fenômeno dinâmico e as línguas mudam o tempo todo", ou seja, a língua é uma manifestação social que tende a corresponder aos anseios e necessidades de seu grupo. À medida que a sociedade passa por transformações, a língua inclina-se para corresponder ao que a sociedade precisa. É notável que não usamos a língua portuguesa tal qual a usaram nossos antepassados; tampouco, poetas e autores contemporâneos escrevem usando a norma-padrão usada por  Camões, Bilac e Machado de Assis. E isso não é demérito; são variações diacrônicas que atingem todas as línguas.

Se a norma-padrão instituída pelo mais recente "Acordo Ortográfico" ainda causar nos leitores desse texto alguma insegurança, sugerimos conhecer um pouco mais da ortografia vigente e ter sempre à mão um bom material de consulta que possa sanar as dúvidas. Bau-delaire, poeta francês, disse uma vez que "manusear uma linguagem habilmente é praticar uma espécie de feitiçaria evocativa". Entretanto, quando o assunto é ortografia, o bom mesmo é não contar com forças obscuras, mas sim, recorrer ao dicionário! O importante é não menosprezar as mudanças e, pelo menos, tentar usá-las sempre, assim, as incertezas tendem a desaparecerem.

MICHELLE APARECIDA  PEREIRA LOPES:  Doutora em Linguística pela Universidade Federal de São Carlos e pesquisadora da constituição discursiva do corpo feminino ao longo da história. É docente e coordenadora do curso de Letras da Universidade de MG