De vez em quando velhas lembranças nos visitam...Meu marido acordou melancólico, triste. Doença da alma é caso sério. Há que se respeitá-la. A causa primeira, aparentemente, era o aniversário de morte de seu pai, há sessenta oito anos. Ele se foi cedo demais, com cinquenta e um anos. Meu marido tinha apenas de-zessete e jamais se esqueceu do olhar preocupado do pai, encarando-o, no momento do desenlace.
O dia todo ele ficou calado, com um ar meio perdido, vago. Onde estaria o homem brincalhão, otimista, falante como um menino alegre? Ao seu lado, fiquei quieta, respeitando sua tristeza.
À noite nossas cachorras latiram exageradamente. Como o ritual costumeiro, ele foi fechá-las para dormir, no canil, dentro de um local que chamamos de quitinete: fechado de telas, com um tablado de madeira de lei, que as protege do frio.
De repente, meu marido voltou, pálido, com uma expressão sofrida, dizendo-me: "Não sei como lhe contar! Terrível!". Assustei-me com o que ele narrou.
No escuro, percebeu que Lara, a caçadora, tinha algo na boca, grande como um gato. Juna tomou-lhe a presa. Com dificuldade meu marido conseguiu arrancar o bicho de sua boca. Horror! Era uma gambá, com meia dúzia de filhotes lindos, que, agarrados no pelo da mãe, procuravam suas tetas.
O pior. Ela fora pega durante o parto. Dentro de sua barriga, outros filhotes se movimentavam. Meu marido prendeu as duas labradoras e deixou a presa lá fora. Não se criam gambás. Ele estava horrorizado. Era um infanticídio de gambazinhos! E os que não tinham nascido ainda?! O que fazer?
Desesperada, eu não sabia o que dizer. Rezei para São Francisco. Ele poderia ajudar? Ficamos os dois desalentados, impotentes. Uma opção seria colocá-los em um saco e deixá-los em um local próximo. Meu Deus! Seríamos assassinos de gambás recém-nascidos?!
Dali uma hora, o meu marido saiu munido de uma lanterna e foi resolver o problema trágico. Alguns minutos depois, ele voltou radiante; a mamãe gambá sumira, com seus filhotes. Ela fingira de morta para proteger a ninhada!
Ficamos de alma leve. Meu marido parecia outro homem, sorridente, feliz com o epílogo da tragédia anunciada. Eu, evidentemente, agradeci a São Francisco, protetor dos animais.
O resto da noite ficamos a relembrar outros episódios acontecidos durante esses doze anos que residimos aqui. O espaço é propício, mil metros quadrados de grama esmeralda, o terreno rodeado de murta, enfeitado de buganvílias de várias cores. Um paraíso! Pássaros em profusão: várias famílias de bem-te-vis; um casal de noivinhas, pombinhas céleres e obreiras carregando galhinhos no bico, construindo seus ninhos.
Há pouco tempo, tive um problema sério. Uma gatinha da vizinhança, fêmea, pois é de três cores, resolveu que queria viver aqui. Aboletou-se na varanda e me olhava com carinho. Três vezes coloquei-a do lado de fora, expliquei-lhe que era impossível. Minhas labradoras jamais a aceitariam. Além disso, meu marido tem um criatório de curiós, que ele chama carinhosamente de minha família ornitológica. Finalmente convenci a linda gata que a sua morada era a casa da vizinha. Há pouco tempo eu a vi, bela, adulta, grávida. Passou por mim, garbosa, exibindo a barriguinha.
Voltou a paz. No dia seguinte do terrível episódio com a linda mamãe marsupial, da família dos dide-lfídeos, meu marido "sarou". Voltou a ser o homem alegre de sempre, limpou a piscina e até resolveu fazer pilates. Eu, cá do meu canto, pensei como a natureza e os seres humanos são complexos. E não tive dúvidas. Rezei mais uma vez, agradecendo a São Francisco de Assis, protetor dos animais, meu Santo predileto.
(*)Ely Vieitez Lisboa é escritora.
E-mail: elyvieitez@uol.com.br