Livros, ensaios, comprovam: a memória é seletiva, guarda só o que quer, muda, transforma, trai. Incautos, no entanto, continuam a acreditar no acontecido, na infância, nos tempos remotos.
Por essas e outras é que não gosto de autobiografias. O biografado olha para trás, recria, narra, pensando que tudo é verdadeiro. Quanta ilusão. É muito comum, em uma roda, irmãos a contar episódios da infância. De repente, um estranha: Eu não era assim, como contam. Era e não era. Depende do enfoque de cada um.
A memória é um depósito de guardados, sem nenhuma ordem ou cronologia. E o interessante é que o consciente é o Cérbero, guardando as portas do nosso Inferno. De vez em quando ele cochila, durante os sonos profundos e há uma sarabanda do nosso museu particular. As imagens, os episódios, os fatos, tudo desordenadamente e sem nenhuma lógica, escapa. Por isso nossos sonhos não têm coerência, nem no espaço, no tempo ou na trama. É um script surrealista absurdo.
Às vezes estava me referindo a algum acontecimento do passado, quando minha mãe me interrompia: Mas não foi bem assim! Eu retrucava sempre: Desculpe-me, mas esta é minha versão e não abro mão dela.
Quem escreve, sabe: ínfimos são os limites entre a ficção e a realidade. Quando escreve, o autor e Deus sabem onde começa uma e a outra. Depois de certo tempo, só Deus. Por isso, a melhor definição de ficção é: uma realidade recriada, com dados da experiência do autor. Então, o que é a verdade? Não sei se real, mas narra a Bíblia que fizeram tal pergunta ao Cristo. Ele não respondeu e pôs-se a rabiscar o chão. Se o Mestre supremo não ousou conceituá-la, justamente por ser plural e diferente para cada um, como pode haver ingênuos que se julgam donos dela, defendem certos posicionamentos de maneira fanática e alucinada? Fraqueza, ignorância ou tolice?
É assustador que haja quem até morra por “sua verdade”, a que ele julga real, pétrea e inquestionável. Na História há exemplos abomináveis, como na Inquisição, no Holocausto, na Ditadura. Passando para exemplos mais corriqueiros, como entender torcidas alucinadas, no futebol? Mais um passo e poder-se-ia falar também dos crimes passionais, que não são mais que um fanatismo, uma aberração de quem quer defender uma ideia de posse, de direito, de justiça própria.
Voltemos à tese inicial. A memória trai. Não se pode ter certeza de nada, no acontecido antes, há muito tempo. Ainda mais que também os olhos mudam, o coração, os gostos, até a alma. Quantas vezes algo que nos encantou, de repente, ou não tão de repente, perde o encanto? Lugares, viagens, locais, pessoas, livros, filmes. Na Sétima Arte, um teste interessante é rever um filme muito antigo. Se ele ainda continua seduzindo, com a mesma beleza e encantamento, é porque é bom, é atemporal e eterno. O mesmo se dá com livros, pessoas.
Na realidade, não interessa saber se são as coisas, os fatos, as pessoas, ou nós mesmos que mudamos. O tempo, a vida, tudo é dinâmico e célere. As paixões fulminantes, os pretensos amores eternos, os sentimentos inabaláveis, de amizade, de amor ou de ódio, nada é imutável.
Tudo passa, tudo se transforma, tudo muda sob a égide de Cronos. Só há algo que não deveria mudar, pois é o supremo alimento: a capacidade de sonhar. Ela alimenta o espírito, dá refrigério à alma. Quem não sonha, seca, mirra, morre. Assim, o que mais assusta é envelhecer por dentro. Para isto não há clínica de estética que dê jeito. Só a morte. Aliás, tal envelhecimento já é o preâmbulo dela.
(*)Ely Vieitez Lisboa é escritora.
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