O carpinteiro Paulo Delfante aprendeu desde muito cedo o valor do trabalho e da família. Herdou o ofício, no qual atuou por mais de 60 anos, com o pai. Filho do também carpinteiro Valdemiro Pedro Delfante e da dona Conceição Braga Delfante, construiu uma família numerosa ao lado da dona Regina Célia Dizaró Delfante, com quem é casado há 50 anos. Quinta-feira passada (18/7), Paulo comemorou seus 80 anos e, após enfrentar sérios problemas de saúde, é agradecido a nova vida que ele recebe a reportagem do Jornal do Sudoeste para contar um pouco de suas memórias.
Jornal do Sudoeste: São 50 anos de casados e 80 de vida. Qual o segredo dessa longevidade?
P.D.: A pessoa precisa ser persistente, ter força de vontade, procurar cumprir seus deveres direitinho. Trabalhando sempre, é possível levar a vida longe. Quando me casei, entrávamos em um regime militar, mas descobri que trabalhando, estávamos ganhando nosso dinheiro e, apesar daquele período, consegui prover minha família e criar meus filhos muito bem. Por mais difícil que pareça, tem um ditado que diz muito sobre isso: “Tudo é mais barato as dúzias”. Construí isso trabalhando montado em uma bicicleta por quase 16 anos. Aos 33 comprei meu primeiro veículo, e assim foi. Meu último veículo já o tenho há 25 anos. É um carro em perfeito estado de conservação.
Jornal do Sudoeste: Você foi carpinteiro a vida inteira, como entrou essa profissão em sua vida?
P.D.: Meu pai era carpinteiro também. Aos 12 anos eu ia nas obras onde ele trabalhava para levar o seu almoço. Nessa fase comecei a aprender o ofício. Aos 20 eu já era carpinteiro. Recordo-me que viajei para o Paraná, onde participei da construção de um galpão. A estrutura feita pelos pedreiros daquela época era um pouco frágil, deu um vendaval e derrubou toda a obra, mas felizmente ninguém se feriu. Depois disso começamos vida nova. Recordo-me que ainda aos 20 dei início na construção de uma casa para mim, naquele tempo o aluguel de uma casa era importante, aluguei, gostei da ideia e construí outra. Aos 26 anos me casei. Como a situação era favorável, e era somente eu e minha esposa, construí uma casa para morarmos. Sempre trabalhamos firmes, criamos essa família grande, ajudamos a criar os netos, e agora tenho três bisnetos: a Camila, o Lucas e Lorenzo.
Jornal do Sudoeste: 80 anos é muito chão. Se pudesse escolher três palavras para resumir essa caminhada toda, quais seriam?
P.D.: Educação, fé e família. Quando eu era jovem, havia um mapa na sala de aula e em todos os instantes de folga, eu o estudava. Aprendi a admirar muito o nosso país, a amar a pátria, minha mãe me ensinou a ir à missa, e nisso passei a crer em Deus. Você também tem que pensar no futuro da família e fazer tudo para dar certo. Por sorte eu consegui tudo isso.
Jornal do Sudoeste: Qual foi o momento de maior dificuldade que o senhor se lembra?
P.D.: Foi uma época em que meu pai andou mal nos negócios e perdeu tudo o que tinha, inclusive a casa onde morávamos. Eu estava com 14 anos. Foi por volta de 1955. Quando eu nasci, havia começado a Segunda Guerra Mundial. Recordo-me dos primeiros anos da minha vida como um período de muita miséria, isso em todo o país. Fomos morar em Cássia, uma cidade muito pobre, no entanto meu pai era muito bom carpinteiro e se tornou gerente em uma serralheria que havia lá, e após trabalhar algum tempo, quando retornou para Paraíso, pôde construir essa casa, mas cinco anos depois perdeu tudo. Mas seguimos a vida e fomos nos adaptando a realidade. Eu aprendi a admirar muito Santa Rita de Cássia, e acredito que ela nos ajudou muito, tanto que chegamos até aqui.
Jornal do Sudoeste: E qual foi o momento mais feliz?
P.D.: Para ser franco, acredito que tenha sido aos meus 16 anos, quando comprei minha primeira bicicleta. Eu montava nessa bicicleta e andava por todo lugar. Carregava escada no ombro montado nessa bicicleta e ainda solteiro construí duas casas andando nessa bicicleta, e ninguém fazia isso nessa época. Apesar do trabalho, aproveitei muito a juventude e tive muito lazer. Íamos nadar nos riachos (não tinha piscinas naquela época, mas aprendemos a nadar desta forma). Nos divertimos muito, foi uma vida de muita liberdade. Passeávamos muito. Eu também gostava muito do cinema, e todo o sábado estávamos lá. Construímos o Cine São Sebastião e foi a coisa mais linda, era uma tela de 48 metros quadrados, e passava os melhores filmes. Eu gostava de todos e conheço o mundo todo através da tela do cinema, filmes feitos na Índia, EUA, França. Conheço Paris como a palma da minha só se ver na tela. É igual a São Paulo: vi tanto em filmes que quando fui lá pela primeira vez aos 20 anos, era como se eu tivesse nascido lá.
Jornal do Sudoeste: Como foi a sua infância?
P.D.: Foi um período de muita liberdade, estudei no Grupo Campos do Amaral. Lembro-me até hoje da professora que tive no 3º ano, a Maria José Soares. Quando me formei, soube que ela havia se casado com um americano e se mudado para os EUA. Dizem que ela ainda vive lá, tem mais de 90 anos.
Jornal do Sudoeste: Qual o significado da sua profissão para o senhor?
P.D.: Desde pequeno eu fazia caixinha de engraxate para os meninos, fazia pião para mim e para vender quando eu queria comprar alguma coisa. Aprendi a trabalhar muito cedo e gostava de mexer com madeira. Meu pai tinha uma fábrica de móveis, então eu aproveitava os retalhos e fazia todo tipo de coisa: rodas para carrinho, cabide de roupa, e fui desenvolvendo essa habilidade. Sempre trabalhei por conta própria, depois de um tempo descobri que tinha que pagar o INSS para poder aposentar-me, fiz isto. Como eu tinha a ajuda de alugueis, nunca enfrentamos crises aqui em casa, sempre tivemos uma vida muito tranquila. A profissão carpinteiro nunca vai se acabar. Os primeiros faziam construções de pau a pique, era uma construção com madeira, ripão e barro. Aqui em Paraíso mesmo eu sei de uma construção de pau a pique na fazenda do Carlos Melles, é a sede da fazenda, com uma construção de madeira muito bem-feita e está de pé até hoje. O carpinteiro que fazia carro-de-boi já está extinto, mas aqueles que trabalham em construção, esse vai existir enquanto o mundo for mundo.
Jornal do Sudoeste: O senhor é muito conhecido por causa do seu trabalho. Como é esse sentimento?
P.D.: É algo que me deixa muito feliz. Em qualquer lugar que eu vá, as pessoas me reconhecem, não importa a hora do dia. Trabalhei para muita gente em Paraíso, assim como meu pai. Eu levava almoço para ele, quando ele construiu o galpão onde hoje é o recinto de festa na Vila Helena, da família Piccirilo. Eu fiz o curtume inteiro da Sociedade Marinzeck, um trabalho que já tem mais de 30 anos e ainda está lá. Trabalhei muito também para o Monsenhor Mancini, que mexia muito com construção. Trabalhei com o Dr. Glauco e a parte mais antiga da Santa Casa fomos nós que fizemos novamente.
Jornal do Sudoeste: Tem alguma situação curiosa que você se recorda?
P.D.: Uma ocasião, eu e meus dois meninos fomos a São Miguel do Araguaia fazer o travamento da sede de uma fazenda. Foi muito importante porque tivemos a oportunidade de caçar e pescar no Rio Araguaia. Tivemos a oportunidade de ver a ema muito próximo e de pegar um peixe que, segundo os costumes indígenas, se você comer a carne dele você não pode ter filhos mais, é o peixe Aruanã, mas eu já tinha sete então comi o peixe mesmo assim. É um peixe muito bonito e com uma carne especial.
Jornal do Sudoeste: O senhor sempre morou no bairro Lagoinha?
P.D.: Eu sou o morador mais antigo daqui. Mudei-me para cá com meus pais aos 16 anos. A família do meu pai construiu a casa de número 5. Como os moradores mais antigos já se foram, restou eu. Estou aqui há mais de 60 anos. É um bairro muito gostoso de se viver. Nunca tivemos assalto, nunca tivemos problemas com vizinhos. Pode ser que tenha outro bairro igual, mas melhor que aqui não há. Paraíso está crescendo muito, e eu assisti esse crescimento. Lembro-me de quando a Vila Formosa, o Jardim Coolapa e Nossa Senhora Aparecida eram fazendas e foram vendidas para loteamento. Quando eu era menino estavam terminando de construir a Igreja da Matriz. Recordo-me quando foi demolida a igreja na antiga Praça do Rosário, aos fundos de onde hoje é os Correios, fiquei de longe assistindo. Amarraram uma corda em um caminhãozinho e na torre, e antes que o caminhão fizesse força a igreja veio abaixo.
Jornal do Sudoeste: O senhor sempre trabalhou, e não teve a oportunidade de estudar muito, mas conhece muito de história e geografia e ensinou aos netos. Como é isso?
P.D.: Eu cheguei a me matricular na Escola de Comércio para retomar meus estudos, mas tive muitos problemas na época e não pude dar continuidade. Naquela época comprei vários livros e me interessei muito por eles. Na parte de história antiga, eu li tanto que acabei decorando. Comprei outros livros também, havia as Seleções que eu lia muito. Além disso, assisti a muitos filmes, que são sempre lições de vida, no modo de viver, de agir, a forma de falar corretamente. Assisti muitos filmes do John Wayne, e o linguajar era impecável. É uma lição de vida.
Jornal do Sudoeste: O senhor preza muito pela verdade e é muito persistente. Isso faz parte sua criação?
P.D.: Sim, nós aprendemos com os pais a respeitar a comunidade e sempre a perseverar. O primeiro que vi passar por grandes dificuldades foi o meu pai, que faliu assim como muitos outros em Paraíso. Mas se formos perseverantes, e trabalharmos firmes, nós vencemos. Hoje falta muito isso.
Jornal do Sudoeste: O senhor é muito politizado. Qual a importância disso para o cidadão?
P.D.: Há cerca de 20 anos sou filiado ao partido Democratas. Até então, não tinha tempo, trabalhava muito, tinha muitos filhos para olhar. Entretanto, sem a política, nós não somos nada, ela é necessária. Por exemplo, nossa Santa Casa está atendendo a centenas de pessoas no Hospital do Coração graças ao Carlos Melles, e povo às vezes esquece. Outro exemplo é a Escola de Enfermagem que veio para Paraíso há muitos anos atrás, foi o deputado Jairo Gomes quem trouxe. Eu trabalhei na construção dessa Escola. Agora, recentemente, que parecia que não vinha mais nada, veio a UFLA, que irá revolucionar a nossa cidade, que já cresceu muito. Quando eu era menino, fechava os olhos e imaginava esses edifícios que hoje vemos em Paraíso.
Jornal do Sudoeste: O senhor está casado há 50 anos. O que significa a dona Regina para o senhor?
P.D.: A gente sem a companheira não é nada, ela é muito importante na minha vida. Eu tive muita sorte, e casei com uma moça de uma família muito boa. Você tendo a companheira certa fica mais fácil vencer na vida.
Jornal do Sudoeste: Qual a mensagem você deixa para as gerações que estão vindo?
P.D.: A mensagem que eu deixo é: toda criança tem aptidão por alguma coisa. Deixe fazerem o que gostam. Se quer ser um pedreiro, deixe ela ser um pedreiro, quem sabe ela não será um grande pedreiro, e tivemos profissionais assim que deixaram seus nomes marcados na nossa história. Também tivemos grande artistas na profissão de carpinteiro. O menino fazendo o que gosta, ele pode se tornar um grande profissional naquilo. Conhecemos pessoas que com pouco estudo se tornaram muito ricas, graças a seu trabalho e dedicação, vamos deixar nossos filhos seguirem seus sonhos.
Jornal do Sudoeste: Qual é o balanço dessa caminhada?
P.D.: Com a família numerosa que tenho, posso dizer que fui muito feliz e melhor que isso não seria possível. Pela profissão que tínhamos, posso dizer que crescemos bastante. Uma família saudável. Tenho muito agradecer, principalmente a nossa Santa Casa de São Sebastião do Paraíso, especialmente ao doutor Luiz Haruo Miyazaki, que salvou a minha vida aos 77 anos. Graças a Santa Casa eu pude dar essa entrevista. Também tenho que agradecer ao Hospital do Câncer de Passos, onde fiz tratamento nesses últimos dois anos. Hoje estou recuperado. Tenho também a agradecer muito aos milhares de fregueses que eu tive ao longo desses 60 anos.