Tudo que se refere ao tempo está alicerçado no mito de Cronos da Mitologia Grega. Modernamente, mais do que nunca, não se desconhece que os mitos são, na realidade, verdades insofismáveis que os gregos descobriram desde tempos imemoriais. Assim, Cronos devorava seus filhos, a fim de ser o senhor absoluto do sempre, reinar soberano.
Realmente, o tempo nos destrói, nos devora. Com ele vai a força, a beleza, os belos cabelos, a face rosada, o brilho dos olhos. Às vezes a síndrome do aumento de RG é mais grave: aparecem doenças, são as juntas que doem, a vista que enfraquece, vira-se uma farmácia ambulante. E o sintoma mais perigoso: o envelhecimento por dentro, no interior, quando a vítima deixa de sonhar, fazer planos, envenenado por um desânimo, um pessimismo doentio. Mas o nosso texto não é um libelo contra a velhice. O enfoque é outro.
Os seres humanos são muito diferentes. Meu marido se destaca por uma característica incomum: ele tem um número enorme de amigos, pessoas que conviveram e trabalharam com ele, há quase meio século. Muitos deles, quando fazem contato, no presente, é como se o tempo não existisse. Conversam no maior entusiasmo, lembram-se de episódios do passado, minúcias, acontecimentos pitorescos. Ele e seus amigos de sempre... É como se, metaforicamente, existisse uma ponte ligando-os, um laço forte que não se rompeu.
Não acontece o mesmo comigo. Muito pelo contrário. Minha relação com o passado é meio conturbada, embora ele tenha sido bom, repleto de acontecimentos felizes, vitórias. Gosto da filosofia de Machado de Assis: Coloque sobre o passado uma lápide onde se lê: Resquiescat in pace (Repouse em paz). Raramente o ressuscito, sou uma presentista assumida. E cada vez que tento fazer contato com pessoas, algumas muito queridas, com quem convivi há tempos, acontece algo desagradável: o amigo transforma-se em um estranho, com quem eu não tenho nada em comum.
Quando esses encontros ocorrem, é meio doloroso. Quem é a pessoa desconhecida, na minha frente?! Apesar de todos os liames do passado, há um abismo entre nós, os laços se rompem, perdidos no presente; o passado belo e/ou poético desaparece, em um deserto árido sem oásis. Dois fatos para ilustrar a tese.
Fato 1: Viúva, com cinquenta e cinco anos, apaixonara-se pelo galã simpático, másculo, encantador. Foram viver juntos. Desastre. Pouco tempo depois, ele era outro homem: bruto, grosseiro, desonesto, infiel. Em apenas um ano ele delapidou o pouco que ela possuía. Separaram-se.
Passaram-se dez anos. Um dia alguém lhe diz: Seu ex-companheiro estará na festa lá em casa. Ele quer vê-la. O Demônio permeia. Ela fica, de início, curiosa e depois fascinada com o reencontro. Vai ao cabelereiro, faz maquiagem, coloca o melhor vestido, sapatos altos, perfuma-se. À noite, vai à festa, com o coração a saltar-lhe pela boca. Ao abrirem a porta, ela o vê, na sala, Ela fica estarrecida! Quem era aquele homem?! Como pudera ter lhe despertado paixão, no passado?! Aquilo?! Meio velho, desgastado, um nada... Ela vira as costas e se vai.
Fato 2: Ele, com dezesseis anos, ela, catorze. Namoravam. Ela lhe deu uma foto linda, a jovem deusa de cabelos longos e encaracolados. Veio a vida, cada um pegou seu rumo, mas ele guardou a foto da namoradinha do passado, como um talismã. Um dia teve notícias dela, estava na cidade. Feliz, foi ao seu encontro, cheio de fantasias. Quando se encontraram, ele se assustou. Quem era aquela mulher envelhecida, meio gorda, feia? Deu meia volta, frustrado, meteu a mão no bolso e rasgou a foto.
(*) Ely Vieitez Lisboa é escritora.
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