Conhecida por seu bom humor, Marlene Filizolla Andrade é uma mulher de fibra que passou por diversas dificuldades ao longo da vida, mas soube com muito jogo de cintura superar todos esses momentos ao lado do seu marido, Benedito Andrade, com quem teve dois filhos, a Márcia Cristina e o Marcelo, que lhes deram três netos, o Daniel, a Natália e o Fábio. Filha de Domingues Filizolla e Conceição Silva Filizolla, já falecidos, Marlene nasceu em Barretos, mas foi criada em São Sebastião do Paraíso pela avó materna, Maria Bárbara, uma mulher séria e muito trabalhadeira, como recorda a neta saudosa. Marlene prefere não revelar a idade, e é muito acolhedora que ela recebe a reportagem do Jornal do Sudoeste para contar um pouco da sua história.
Jornal do Sudoeste: Como Paraíso surgiu na sua vida?
Marlene Filizolla Andrade: Eu sou natural de Barretos e perdi meu pai quando ainda era muito pequena. Existia uma "incompatibilidade" entre as famílias do meu pai e da minha mãe, a dele italiana, e da minha mãe toda vinda da roça. A união dos dois não foi muito aceita, e com seis anos de casado meu pai faleceu. A família do meu pai queria ficar com os filhos da minha mãe, mas a minha avó materna, muito cabeça dura, não deixou que eu ficasse, e me trouxe para Paraíso. Fui criada aqui, onde cheguei com um ano e meio. Aqui é a minha cidade natal, apesar de conhecer Barretos, fui lá poucas vezes para ver esses familiares, que conheci já mais velha. Eu tinha oito anos quando conheci meus avós paternos, depois disso só voltei quando me casei, e em outras duas oportunidades. Em Barretos eu apenas nasci.
Jornal do Sudoeste: Você estudou em quais escolas?
M.F.A.: Estudei na Escola Municipal Noraldino Lima e depois do Colégio das Irmãs Doroteias, o Colégio Paula Frassinetti. Depois de formada fui aprender uma profissão. Profissão naquela época era tudo manual, não tinha muitas oportunidades como trabalhar em balcão, loja, escritório, então fui ser costureira. Nesta época, costurei para diversas famílias, e famílias bem ricas. Até então eu morava naquela região do Largo São José, na Tiradentes, e trabalhei com costura até me casar. Depois me mudei para a Praça da Abadia, que é outro hemisfério. Lá, onde viviam famílias mais abonadas, mandava-se fazer um trabalho de costura e não importava o preço, aqui isso mudou, porque as pessoas eram mais humildes, eram pessoas mais trabalhadoras, e fui parando aos poucos com esse trabalho, mas não me importei muito.
Jornal do Sudoeste: A família aumentou, não?
F. A.: Sim, logo fiquei grávida e tive minha primeira filha, a Márcia Cristina, e depois de mais dois anos fiquei grávida do meu filho mais novo, o Marcelo. Como sempre tive facilidade com trabalhos manuais, depois que vim para cá, resolvemos ser representantes do Baú da Felicidade, mas logo larguei mão disto, e como não surgiam oportunidades, e eu não era mulher de ficar só cuidando de casa, entrei em um curso de pintura em tecido, mas minha professora ficou doente e parei, porém, aprendi alguma coisa. Logo depois fiz um curso por correspondência para fazer flores, mas financeiramente não me rendeu nada. Passado uma temporada, comecei a fazer salgados para vender e trabalhei com isto por 10 anos nesta região da Abadia. Não muito tempo atrás, sofremos um acidente de carro, a nossa saúde ficou um pouco prejudicada e parei também com isto. Pouco tempo depois, apareceu um anjo da guarda que foi uma jornalista do Jornal do Sudoeste e que fez uma reportagem comigo, sobre um trabalho que eu fazia de jato de areia, isso me ajudou muito.
Jornal do Sudoeste: Como era esse trabalho?
F. A.: Por eu ter facilidade manual com desenho de flores, comecei a fazer jato de areia. Recordo que uma pessoa conhecida estava reformando a casa, e veio uma pessoa que sabia fazer esse trabalho e eu, muito curiosa, aprendi. Trabalhei também 10 anos com isto, até sofrer o acidente. É algo que eu até posso continuar a fazer, mas a modernidade trouxe outras coisas como computador, e o serviço manual passou a segundo plano.
Jornal do Sudoeste: A senhora diz que sempre foi muito festeira. Como foi essa época?
F. A.: Paraíso, quando eu tinha meus 20 anos, tinha muitas festas. Havia uma certa disputa entre o Clube Paraisense e a Liga Operária. Se vinha uma orquestra no Clube Paraisense no Dia dos Namorados, a Liga Operária já arrumava outra orquestra para vir na próxima data comemorativa. Aqui estiveram Ruy e Rey, que era muito famoso, Chiquinho e sua Orquestra. Recordo-me também do Cassino de Sevilha, que veio do exterior para uma turnê e Paraíso foi um desses destinos. Nós estivemos em todos esses momentos. Se tinha festa junina, também estávamos lá. Quando eu e o Dito casamos, íamos a pé para esses bailes, não tinha carro. Na volta eu chegava sem sapato porque ia com um "saltão" para esses bailes. Aproveitamos muito bem a nossa vida. Hoje temos nossos problemas, mas pensando bem, aproveitamos muito a nossa vida.
Jornal do Sudoeste: Como a senhora conheceu o Dito?
F. A.: Eu conheci o Dito quando morei durante uma temporada na avenida Angelo Calafiori, e ele sempre morou neste endereço em frente a Praça da Abadia. Ele era muito namorador, e eu achava difícil fazer parte desse "time". Mas tive sorte. Ele é um grande homem, tem um moral muito elevado. Vamos fazer 54 anos de casados. Temos uma família maravilhosa e são todos muito espetaculares, tanto meu genro, quando minha nora e meus netos.
Jornal do Sudoeste: Você sempre esteve envolvida com movimentos da Igreja?
F. A.: Eu era muito carola, fui criada dentro da Igreja do Colégio das Irmãs, e minha avó morava bem próximo dali, a uns cinco minutos. Próximo ao Colégio, tinha o Instituto Monsenhor Felipe, onde fiz a minha primeira comunhão. Dentro do Colégio, me dediquei muito a religiosidade, inclusive as Irmãs acreditavam que eu iria para o convento, mas a minha cabeça era outra. Até o momento em que me casei, eu frequentava a Igreja da Matriz de São Sebastião, mas não conseguia me encaixar porque naquele tempo não haviam movimentos religiosos abertos. Quando me mudei para a Praça da Abadia, tinha a paróquia, mas ela não funcionava, não tinha padre, porém, no ano que mudei para cá foi nomeado o padre Galvão, e para todos nós, foi uma festa. Eu acabei me encaixando na Paróquia. Comecei como ajudante. O padre Galvão conviveu muito com a gente aqui em casa e, inclusive, foi ele quem batizou minha filha. Depois, foi trocando de padre e eu fui ficando. Já são 52 anos na Paróquia.
Jornal do Sudoeste: Você também esteve à frente do Coral da Igreja?
F. A.: Sim. Começou com um movimento de missões e resolvemos fazer um grupo de canto. Era muito difícil um grupo assim, e eu sabia muitas músicas que aprendi no colégio, além de outras três amigas que também conheciam muitas músicas. Começamos nós quatro cantando "no peito", não tinha nem violão. Formamos um grupo grande e quando fez um ano, surgiu o primeiro violeiro, depois o segundo violeiro. Ainda, naquela época, surgiu o Grupo de Jovens, nós que éramos o grupo mais velho fomos apelidados de Grupo de Casais, e estamos até hoje ligados a Paróquia. Mudou muita gente ao longo desses anos, mas ainda há três daquela mesma época. Também faço parte do Centro Paroquial, que são pessoas que se mobilizam para organizar algum evento ligado à Paróquia, além de outros movimentos.
Jornal do Sudoeste: Há quanto tempo ajudando na famosa Festa da Abadia?
F. A.: Há pelo menos 40 anos. Já fiz de tudo um pouco: já vendi bilhete, já vendi quentão, caldo, salgados. Esse ano estou impossibilitada de trabalhar, por motivos de saúde, mas mesmo assim as pessoas vêm me procurar para saber o que fazer, como fazer, mas a gente chega a um ponto que precisamos ceder lugar para os jovens, porque se os mais velhos não fizerem isso, como essas novas gerações vão assumir essas responsabilidade? Nós, mais velhos, vamos ser sempre um empecilho, porque esses mais jovens sempre se sentirão inibidos diante da nossa experiência - não pode ser assim, temos que experimentar essas novas ideias. Se não colocarmos as crianças para aprender e fazer parte, o que sobrará quando nós não estivermos mais aqui? Precisamos dar oportunidade e é preciso crescer, não importa a religião, Deus é um só.
Jornal do Sudoeste: O que você mais sente falta desses tempos?
F. A.: Sem dúvida das festas, mas principalmente da segurança que tínhamos. Hoje em dia não dá para andar na rua a noite sozinho. Antigamente, íamos ao baile que começava às 22h e ia até às 2h da manhã. Lembro de voltar a pé para casa. Hoje em dia isso é possível? De jeito nenhum, é um perigo. Hoje em dia, não é um ou outro lugar que está perigoso, são todos os lugares. Aqui mesmo, teve uma semana que uns rapazes assaltaram uma porção de residências e comércio vizinhos, só não vieram aqui em casa, porque já haviam assaltado anteriormente. Chegamos a ser agredidos por um homem que entrou pelo forro. Nunca mais o vimos. Ele entrou só pelo dinheiro. Não temos segurança. Você vai num evento, e lá tem polícia, mas é a sua casa? Eu sinto muita falta da segurança.
Jornal do Sudoeste: Qual foi o momento de maior dificuldade dessa caminhada toda?
F. A.: Todas as dificuldades que passamos na vida, eu e meu marido, apesar de tudo, sempre tivemos muita força. Tivemos problemas de saúde quando minha filha nasceu, inclusive devo a vida dela ao doutor Luiz Faraco (de Batatais). Nesta época passamos muito apertado e tratamos dela durante oito anos, sem dinheiro, que era difícil e não tinha INSS. Aconteceram doenças na família, minha sogra, conhecida como Belinha, ficou doente, mas conseguimos dar apoio para ela. São momentos difíceis de se passar, mas o momento dos dois acidentes que sofremos modificou nossa vida. Nós ainda não conseguimos ficar de pé. Às vezes nossos filhos dizem para esquecermos, mas não dá para esquecer a dor. Ainda sofremos com as sequelas desses acidentes. Já atravessamos momentos difíceis, mas este último ainda não superamos.
Jornal do Sudoeste: O acidente ainda causa reflexos na rotina de vocês?
F. A.: Sim, e já tem quatro anos. É difícil, mas não podemos reclamar não, porque aproveitamos bem a nossa vida nesses mais de 40 anos de casados. Tivemos algumas intempéries nesse percurso, como algumas perdas na família, para a qual nunca estamos preparados, mas o acidente foi o momento mais difícil e ainda não superamos, é difícil, principalmente quando envolve o psicológico.
Jornal do Sudoeste: Não faltam amigos, não é mesmo?
F. A.: Não, todos nos apoiam muito, não importa a hora do dia. São amigos que fazem serviço de motorista, de bancário, são maravilhosos, sem contar os que aparecem a todo o momento querendo saber se precisamos de alguma coisa. É difícil encontrar amigos assim, porque às vezes por mais que tenhamos amizades, não é todo mundo que tem tempo, a vida é muito corrida, nosso filho não fica um dia sem vir aqui para ver se precisamos de algo.
Jornal do Sudoeste: Qual o balanço que você faz dessa trajetória?
F. A.: De tudo o que passamos, eu sinto que nossa vida, com todos os percalços foi muito boa. A gente não pode pesar só carne ruim, temos que pesar o filé, o filé pode ser pouco, mas é muito saboroso. No fundo, passamos por problemas para valorizar mais a vida, valorizar os amigos, as pessoas que nos querem bem, as que aparecem em nossa vida e que às vezes nem se tinha muito contato. A vida deve ser um livro bom, se não for, você deve jogar ele fora. Vivemos muita coisa boa.